• A maçaneta redonda

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  • 25/06/2023 08:00
    Por Ataualpa A. P. Filho

    Na quarta-feira passada (14/6), saltou da memória um desejo da adolescência: ter uma caneta Ciclope. No tempo em que a palmatória era uma ferramenta didática de uso frequente, eu, com o intuito de fugir dela nos ditados, almejava ter “a melhor caneta do mundo”, marca Ciclope, que custava “apenas 100 cruzeiros”. Era vendida por um “Camelô”, descrito por Cecília Meireles. Tive conhecimento dessa caneta por meio de uma crônica dela, que li em um livro didático de Língua Portuguesa. Depois a encontrei na obra “Escolha o seu Sonho” da referida autora.

    Sim, eu queria ter uma caneta Ciclope, pois estava cansado dos castigos da palmatória. O meu recorde foram 36 bolos. Tive apenas três erros no ditado. Mas cada erro valia uma dúzia. Para suportá-los, eu revezava as mãos: primeiro a direita, depois a esquerda e assim sucessivamente. Mas nem por isso deixei de amar as palavras. O vínculo que temos é muito forte. Talvez seja por isto: já vivemos momentos dolorosos…

    Quando li a crônica da Cecília, “Camelô Caprichado”, sonhei com a magnífica caneta Ciclope, mais eficiente que o ChatGPT, pois não dependia de algoritmo: 

    “Adquirindo-se uma destas maravilhosas canetas, pode-se dominar qualquer hesitação da escrita: a caneta Ciclope escreve por si! Acabaram-se as dúvidas sobre crase, o lugar dos pronomes, as vírgulas e o acento circunflexo! Diante do erro, a caneta para, emperra – pois não é uma caneta vulgar, de bomba ou pistão, mas uma caneta atômica, sensível, radioativa. Candidatos a concursos, a cargos públicos, a lugares de responsabilidade! – a caneta Ciclope resolve todos os problemas ortográficos e caligráficos! E ainda mais: esta caneta não apenas escreve, mas pensa! (E por 100 cruzeiros!)”

    Mas dessa vez, quis tê-la, porque me senti incompetente para descrever as lições de vida que pude presenciar ao ouvir o diálogo entre duas excelentes educadoras: uma já desfrutando da aposentadoria, porém ainda atuando no magistério municipal; a outra ainda no meio da caminhada, enfrentando os desafios da contemporaneidade. 

    Temos limites: às vezes as palavras não traduzem o que o coração sente. Fica no indizível a força da superação, porque só quem atravessa os percalços da caminhada é que pode mensurar a dor proveniente dos calos quando apertados. 

    As duas superaram momentos difíceis. Sou testemunha, vi de perto: 

    – Como é bom ter a autonomia de um banho! Tomar banho no leito é doloroso…

    – Como abrir uma porta com maçaneta redonda com os dois pulsos imobilizados, sem poder mexer os dedos?! Ficar sem condições de desabotoar uma blusa, precisar sempre de alguém para ir ao banheiro…

    Vi, nos poucos minutos do diálogo das duas, lições de superação sem perder a ternura. Foi o acaso que me permitiu estabelecer o contato entre elas. E o assunto surgiu a partir dos desafios que hoje temos que enfrentar no primeiro segmento do Ensino Fundamental.

    Quando pensei em traduzir essa vivência em crônica, veio à mente: só com a caneta Ciclope vendida por “100 cruzeiros” pelo “Camelô Caprichado” descrito pela Cecília. Veja as virtudes do que ele oferecia para “todos os que vivem da pena, para a pena, pela pena”: 

    “Não mais dificuldade de rima nem de concordância! Com esta caneta pode-se escrever com igual facilidade qualquer romance policial, peça de teatro, folhetim, artigos, crônicas, procurações e testamentos! Tudo rápido, correto, limpo! Cartas de negócio e cartas de amor! Tudo com o mesmo sucesso: porque esta caneta Ciclope (como o nome está dizendo) é um gigante que transporta qualquer ideia para qualquer lugar.”

    Transportar uma ideia para o papel talvez não seja tão difícil quanto querer traduzir a dor de outra pessoa em palavras. Contudo, é possível constatar que, para “dar a volta por cima”, é preciso ter a força interior que mantém a energia propulsora da resiliência para dizer: “desesperar, jamais”.

    Mais uma vez, certifiquei-me que as vitórias começam dentro de nós: a fé, a esperança são ingredientes imprescindíveis na perseverança, na tenacidade.

    Sem a desejada caneta Ciclope, sem chatGPT, eu, apenas, quero externar aqui a minha gratidão a essas amigas educadoras que me proporcionaram a oportunidade de consolidar a ideia de que é possível vencer as adversidades sem perder a ternura. 

    – Precisamos continuar abrindo portas com maçanetas redondas, apesar de placas e pinos nos punhos…

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