• A lupa da adivinhação

  • Continua após o anúncio
  • Continua após o anúncio
  • 27/out 10:09
    Por Ataualpa A. P. Filho

    Quem quiser enxergar o futuro que desenvolva o senso crítico sobre o presente. O amanhã passa pelo agora. Desejos alimentam fantasias…

    Quem carrega uma cruz nos ombros conhece bem a importância do chão que pisa. Aprende a conter os desejos para não flutuar nas ilusões. Não se vive só por encantos. Os desencantos apontam as pedras no meio do caminho. A doce vida precisa de Sol e sal.

    A conquista de “sombra e água fresca” requer um esforço que perpassa pela honestidade do trabalho, uma vez que, a paz interior é que permite enxergar melhor o mundo pela ótica do Bem.

    A realidade desperta dor. Contudo, a consciência tranquila é que mantém a serenidade, pois eleva o olhar na direção do horizonte. Há um além impalpável que direciona para o eterno: a fé esperançada…

    Há os que, mesmo com uma lupa sobre o óbvio, evitam voltar os olhos para o real, para não enxergar os males da humildade. Apesar de dura e crua, a realidade não pode ser vista como Medusa, capaz de petrificar quem a encara.

    É certo que “os olhos são a porta do engano”, como afirmara Guimarães Rosa, no conto “O Espelho”.

    O tempo é um bonde que se pega andando, não estaciona para embarque, nem desembarque. Há os que saltam por vontade própria; outros, sem vontade de ir, seguem viagem. Outros ficam no tanto faz. Mas há os que valorizam essa viagem. Por isso, esmeram-se no servir. Fato este que enriquece lembranças. E temos a Arte que imortaliza as criaturas que se dedicam a ampliar a criação.  

    Há também os que manobram “a lupa da adivinhação” somente para ver os erros dos outros. Mas apresentam uma imensa dificuldade para manobrá-la com o propósito de ver a própria imagem e uma imensa indisponibilidade para fazer “a dificílima dangerosíssima viagem/ de si a si mesmo”, citada por Drummond, no poema “O homem; as viagens”, no qual, ele diz: “o homem, bicho da terra tão pequeno/ Chateia-se na terra/ lugar de muita miséria e pouca diversão.”

    E, para não perder esse fio poético, aproveito o ensejo para dizer que o título deste texto veio do poema “Cabeceira” de Ana Cristina Cesar, que veio à lembrança quanto li a notícia sobre a morte do poeta, filósofo, professor, Membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), Antonio Cícero, autor do poema “Dilema”, publicado no livro “Guardar”:

    “O que muito me confunde/ é que no fundo de mim estou eu/ e no fundo de mim estou eu./ No fundo/ sei que não sou sem fim/ e sou feito de um mundo imenso/ imerso num universo/ que não é feito de/ mim./ Mas mesmo isso é controverso/ se nos versos de um poema/ perverso sai o reverso./ Disperso num tal dilema/ o certo é reconhecer:/ no fundo de mim/ sou sem fundo.”

    O procurar-se, nas próprias entranhas, quando intensificado, expõe faces desconhecidas que se tornam letais como serpentes na cabeça de Medusa. Domar tais serpentes é o desafio de cada vivente. Nem sempre funcionam as tocais armadas nos divãs, pois, a cada dia, somos outros.

    Quando li a carta de despedida de Antonio Cícero, lembrei-me dos versos de “Marginália II”, do Torquato Neto: “aqui meu pânico e glória/ aqui meu laço e cadeia/ conheço bem minha história/ começa na lua cheia/ e termina antes do fim.” 

    Ninguém “termina antes do fim” sem dor. Ninguém está livre da escolha entre o bem e o mal.

    Ao término da leitura da reportagem sobre a despedida de Cícero, recitei, baixinho, só para mim, como quem pensa alto, o poema do Bandeira, “Tirado de uma notícia de jornal”:

    “João Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro da Babilônia num barracão sem número./ Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro/ Bebeu/  Cantou/ Dançou/ Depois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.”

    Antes de desembarcar na Suíça, para embarcar em uma viagem sem fim, Cícero passou dois dias em Paris: visitou museus, foi a restaurantes, visitou exposições. E, após, despedir-se da Cidade das Luzes, embarcou para Zurique, onde adormeceu, por decisão própria, para sempre…

    “Guardar uma coisa é olhá-la, isto é, fitá-la, mirá-la por admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.” Esses versos do poema “Guardar”, de Antonio Cícero, estão relacionados à liberdade do que se imagina. Livre é o desprendido de conceitos, de preconceitos…

    Pelo que permite o livre-arbítrio, o poeta Antonio Cícero deu visto no seu próprio passaporte. Ninguém pode julgá-lo por isso. Por essa via, ou por outras, chegaremos, um dia, às cinzas. Torquato Neto e Ana Cristina Cesar também pediram a conta e desembarcaram deste mundo, mas deixaram belos poemas para posteridade…

    Últimas