• A letalidade (visceral) do tráfico

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  • 15/05/2021 08:00
    Por Gastão Reis

    Vira mexe, mexe vira, somos expostos às investidas da PM e da Polícia Civil no combate a traficantes e às drogas nas favelas do Rio de Janeiro. A mais recente, levada adiante pela Polícia Civil apresentou um saldo de 28 mortes. O governo do Estado defendeu-se afirmando que a operação foi planejada por 8 meses com a cuidadosa identificação dos criminosos, inclusive autorização judicial, para realizar a diligência no Jacarezinho. Segundo o governo, os traficantes vinham aliciando jovens para fazer a distribuição das drogas. E que era preciso estancar esse processo pernicioso de uso de jovens para realizar essa tarefa que também os expunha a serem futuros viciados.

    A reação da mídia vem sendo extremamente dura contra a realização da referida operação. Teria havido execuções sumárias sem o devido respeito aos direitos humanos dos acusados. Um jornalista da GloboNews disse que o policial morto com um tiro fatal na cabeça deveria ter sido a senha para interromper a operação. É estranho imaginar que uma operação de repressão policial ao tráfico possa ser vista dessa forma. É óbvio que tais intervenções apresentam riscos para os policiais, não obstante a preocupação existente em minimizá-los. Evidencia, isso sim, a disposição de luta dos traficantes. A interrupção da operação certamente teria sido comemorada pelos traficantes com rajadas de metralhadoras que a grande mídia talvez não noticiasse.

    Outra observação crítica foi o fato de invadirem residências na perseguição aos que fugiam e tentavam se abrigar nas casas vizinhas aos locais em que estavam. Os policiais não teriam a devida permissão legal para penetrar nessas residências, o conhecido mandado de busca e apreensão. Filmes americanos nos mostram com frequência as perseguições a criminosos por policiais em que eles vão saltando de casa em casa até serem presos. Ou não. Jamais passaria pela cabeça de um policial americano interromper a perseguição para sair em busca de uma autorização judicial em tais circunstâncias. Fugir é revelador.

    Outro fato apresentado pela mídia foi a reação da mãe chorosa de um dos traficantes mortos em que ela acusava a polícia de ter executado seu filho. Foi divulgado depois, nas redes sociais, um vídeo de outra mulher, parecidíssima com a mãe, que a mostrava numa festinha dançando e tendo às mãos um fuzil proibido para uso civil. Em seguida, alguém lhe deu um colete à prova de balas para compor a cena sintomática. O fuzil era de plástico, mas retratava bem a dura realidade do tráfico incorporada ao subconsciente de quem reside no Jacarezinho como um fato permanente de sua vida diária.

    Quanto ao despreparo da PM e da Polícia Civil para realizarem ações com resultados permanentes a longo prazo como a redução efetiva da criminalidade nessas áreas, eu já abordei a questão em artigos anteriores em que apontava a ineficiência estrutural delas em função de uma escala de trabalho de 24 por 72 horas. Um dia trabalhado seguido de três de folga induz o policial a buscar outra atividade, levando-o à perda de foco no que deveria ser sua  principal função. Pesquisei escalas de trabalho de policiais em países como os EUA, Canadá e europeus e não encontrei tal desatino a que se dedica o Patropi há décadas. Esta é a razão básica de nossa desilusão em relação aos resultados medíocres em desvendar crimes da atividade policial no Brasil.

    Vamos agora ao que chamei de letalidade visceral do tráfico e seus efeitos deletérios nas comunidades que estão sujeitas à lei da selva dos traficantes.

    Inicio com uma vivência pessoal. Fui candidato a deputado federal pelo Partido Novo em 2018. Ainda me lembro de um conhecido que fazia um bom trabalho social na favela da Maré. Eu lhe perguntei se poderia angariar votos lá no local. Ele achava muito difícil. Antes de mais nada, eu teria que pedir permissão ao chefe do tráfico para poder me dirigir àqueles potenciais eleitores. Ainda me alertou que o eleitorado ali residente só era exposto a candidatos pré-filtrados pelos chefões. Eu me recusei a submeter meu senso de cidadania a tamanha humilhação, que incluiria compromissos inaceitáveis com criminosos.

    Aparentemente, ainda não nos demos conta do que vem ocorrendo, em especial no Rio de Janeiro, nessas comunidades submetidas ao jugo permanente dos traficantes. Aquele dito “Cala a boca já morreu!” da ministra Cármen Lúcia, do STF, não se aplica nessas localidades. Vigora a lei do silêncio. O morador toma muito cuidado com o que diz. Até mesmo com o que pensa com receio de represálias dos chefões do tráfico que não titubeariam em tirar-lhe a vida se desconfiassem que ele representaria algum tipo de ameaça.

    Infelizmente, é praticamente impossível fazer um levantamento de quantas pessoas perderam a vida ao longo dessas últimas décadas em que o tráfico de drogas se consolidou. As decisões sobre quem vive ou morre são arbitrárias. Tais execuções são do conhecimento de quem vive nessas comunidades em a que lei maior é a do silêncio. Esse tipo de letalidade é permanente, vigorando no dia a dia. O número de mortes a bala pelos traficantes ou por overdose deve superar a letalidade da polícia sem com isso querer justificar  arbitrariedades que possam ocorrer.

    Ainda me lembro bem do ano de 1977 quando cheguei nos EUA para minha pós-graduação em economia. Fui gentilmente recebido em Nova York e depois em Filadélfia por representantes da Universidade da Pensilvânia. Ambos me alertaram para tomar cuidado e evitar os bairros negros devido ao risco elevado de ser roubado ou sofrer violências piores ainda. Trinta anos depois, eu e minha mulher visitamos Nova York e Filadélfia, e andamos pelas ruas sem qualquer problema após as 9 horas da noite. Foi o resultado prático da tolerância zero e outras medidas implantadas nas cidades americanas.

    A moral da história é que, sem uma reforma em profundidade das regras de funcionamento das Polícias Civis e das PMs, é relativamente fácil prever que o futuro vai continuar com a pior das letalidades a pleno vapor.

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