• A Justiça, o Direito e as controvérsias

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  • 22/05/2021 08:00
    Por Gastão Reis

    O moderno debate sobre a riqueza das nações, título da obra magna de Adam Smith, base da economia como ciência, que via a concorrência como o principal motor do crescimento sustentado, caminhou numa direção em que a qualidade das instituições passa a ser o segredo do desenvolvimento de um País. Douglas North, Nobel de Economia em 1993, da escola institucionalista, define instituições como as regras do jogo. Segundo ele, elas “definem a estrutura de incentivos das sociedades, e, especificamente, das economias”. E aqui adentramos nas críticas de Roberto Campos sobre os efeitos desastrosos de longo prazo das políticas equivocadas que adotamos. North e Campos contam ainda com o apoio abalizado de Amartya Sen, que recebeu o prêmio Nobel de Economia em 1998 por sua formulação original sobre o desenvolvimento, um processo que passou a ser visto como uma extensão das liberdades para trabalhar, consumir, dispor de saúde, e educação de qualidade e expressar livremente os pensamentos. Ou seja, não fizemos o dever de casa.

    Passo agora a examinar dois artigos ilustrativos da nossa tragicomédia.

    O primeiro, de 5.5.2021, no Globo, revela no título a que veio: “STF, alvo preferencial”. Foi escrito pelos advogados Lenio L. Streck, Marco A. de Carvalho e Fabiano S. dos Santos. Eles põem as garantias processuais num pedestal na defesa dos direitos individuais como imparcialidade, juízo natural e prescrição. Ou seja, assim como o soldado, desde o Império Romano, tem direito a um comandante capaz, o acusado merece um julgamento justo, com as devidas garantias processuais. E aí se colocam na posição de defesa do STF obediente aos ditames dessas garantias que levaram à suspeição de Moro no caso Lula.

    Eles discordam da reação de indignação havida na mídia, entre juristas de renome nacional e na população em geral sobre certas decisões do STF, aqui inclusa a de 8 a 3, que beneficiou Lula. Recorrer a questões processuais, anos depois, para respaldar à decisão de que o foro adequado seria Brasília e não Curitiba, embora não tenham dito isto explicitamente, fica subentendido. E nos informam que estaríamos dando corda ao enfoque do Sr. Buckley, um famoso juiz leigo americano, que dizia: “Eu sigo meu próprio bom senso e pros diabos com o Direito.” Só esqueceram de reconhecer que o exemplo não se encaixa em algumas das decisões desastradas do STF duramente criticadas por juristas cuja formação intelectual dá banho em certos ministros do STF.

    Ainda me lembro bem de meu irmão, advogado, me repetindo algumas vezes o que havia ouvido de professores na Faculdade de Direito: “A justiça antecede o Direito e lhe é superior”. Um bom exemplo bíblico é aquele julgamento de Salomão, famoso por seu senso de justiça, ao mandar cortar ao meio uma criança, dando metade a cada uma das mães que a disputavam. A mãe verdadeira foi facilmente identificada ao preferir dar a criança à sua rival, esta indiferente à lâmina fatal. Salomão conhecia a ordem de prioridade.

    O que a população e muitos juristas exigem é que a justiça seja feita ao invés de recorrer a filigranas jurídicas que são vistas pelo País como a triste mensagem de que o crime compensa e a corrupção sistêmica do PT também.                

    O segundo artigo, de 15.5.2021, no Estadão, também revela no título a que veio, mas, neste caso, na direção correta: “O autoritarismo de ontem e os males de sempre”. O autor Nicolau R. Cavalcanti é advogado, mestrando em Direito Penal pela USP. O parágrafo inicial é o seguinte: “Não são apenas as desigualdades sociais e econômicas que insistem em permanecer na trajetória brasileira. Os males institucionais são também teimosos, como mostra Luis Rosenfield em seu livro “Revolução Conservadora: Genealogia do Constitucionalismo Autoritário Brasileiro (1930-1945) – Editora da PUCRS, 2021”.

    Em artigo que publiquei em 10 de março de 2015, no Estadão, intitulado “Pedro II e Getúlio”, eu fazia um cotejo entre os descaminhos de Getúlio, ancorado no positivismo autoritário da ditadura científica de Auguste Comte, e a visão correta de Pedro II e seus frutos permanentes de longo prazo. Ou seja, a pedra angular era a confiança do povo nas instituições, em linha direta com North, Campos e Sen, quanto à estrutura de incentivos das sociedades capazes de promover o desenvolvimento sustentado. A nossa peça fundamental era o controle do andar de cima via poder moderador, instrumento eficaz de defesa do interesse público, jamais usado para oprimir o povo, e sim para defendê-lo.

    Na verdade, o Brasil é um caso lamentável de involução institucional desde 1889. Luis Rosenfield põe o dedo na ferida, em especial quando nos fala do pensamento constitucional autoritário, antiliberal e corporativista. Os erros de Oliveira Vianna, intelectual e historiador, são enumerados por ele mesmo ao defender a democracia autoritária (sic!), eugênica (racismo?) e corporativa. O embate entre idealistas constitucionais e realistas autoritários no período do Estado Novo de Vargas é mais que revelador do nosso desvio de rota.  E deu filhotes depois na ditadura militar que se estendeu de 1964 a 1985.       

    O grande mérito do livro de Luis Rosenfield, ao dar nome aos bois – constitucionalismo autoritário –, foi trazer a público o drama de nossas instituições políticas disfuncionais. Embora focado no período1930-1945, sua crítica vale  para a República Velha (1889-1930), e acaba se estendendo até os dias atuais em seus desdobramentos: corrupção sistêmica, desigualdade brutal e falta de representatividade dos políticos. O constitucionalismo autoritário se metamorfoseou na ditadura do judiciário via STF com incursões nos demais poderes a ponto de abrir a porteira para que muitos corruptos condenados, até em segunda instância, fossem postos em liberdade, com Lula liderando o bloco. De controvérsias em controvérsias protelatórias, chegamos ao fundo do poço. A primazia da Justiça foi esquecida ao se valer de recursos processuais para jogar nossa autoestima na sola do pé. Mas a esperança é verde e, mais cedo do que tarde, quem paga as contas vai cobrar os desatinos com juros e correção monetária. Mesmo na pandemia, as ruas começam a se manifestar. E vão falar mais grosso em breve.

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