• A justa medida: comece consigo mesmo e respeite a Terra

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  • 03/07/2022 09:00
    Por Leonardo Boff

    As mudanças e a própria história não se fazem mecanicamente. Sempre ocorrem dentro de condicionamentos do passado e do presente. Mas nunca eximem a atuação dos sujeitos históricos que usam sua liberdade e tomam posições. São eles inseridos num determinado contexto, que fazem a história. O mesmo vale para o resgate da justa medida, tão urgente para os tempos atuais.

    A justa medida está presente em todas as éticas mundiais. O verdadeiro humanismo somente se dá, se ele se fundar na moderação, no caminho do meio, e na justa medida.

    Por onde começar?

    Comece consigo mesmo           

    Fundamentais são as mudanças pessoais, chamadas de revoluções moleculares,  que marcam o primeiro passo para qualquer processo de transformação.  Esta só será efetiva se a pessoa se dispuser a operá-las em sua própria vida. Neste quesito devemos ser concretos: o excesso de marketing faz com que as pessoas sejam seduzidas pelo consumo e percam a justa medida; o excesso de selfies denota narcisismo; o tempo dedicado a viajar por pura curiosidade pelos programas da internet e outros do gênero são demonstrações de falta da justa medida. Reféns da virtualidade negamo-nos o gosto do encontro e da amizade. Bem observou o Papa Francisco na encíclica Todos irmãos e irmãs: “Os meios digitais nos privam-nos dos gestos físicos, expressões do rosto, silêncios, linguagem corpórea e até o perfume, o tremor das mãos, o rubor, a transpiração, porque tudo isso fala e faz parte da comunicação humana:”(n.43). 

    Tais meios nos fazem próximos, mas  não irmãos. Constituem princípios da física quântica e da nova cosmogênese ver toda a realidade, também a matéria, como formas de energia em distintos graus de densidade e sempre em teias de relações. Consoante esta compreensão, nada existe fora das relações, nenhum ato feito pela pessoa fica retido nela. A energia que emite, circula por  todas as teias, fortalecendo-as e desta forma acelerando a construção da Casa Comum.

    Disso se deriva o fato de que nenhum ato humano se reduz ao pessoal, mas sempre implica o social e o global, porque estamos permanentemente conectados com eles. Vejamos algumas expressões desta dimensão da justa medida  no âmbito pessoal.

    Antes de mais nada, cada pessoa deve minimamente conhecer-se, suas pulsões, suas energias interiores, se positivas ou negativas. Há pessoas que, por natureza, são mais impulsivas e dadas a perder a justa medida. Há outras, por natureza, mais tranquilas e, face a situações conflitivas, que não perdem a justa medida.

    Manter a justa medida nestes casos, representa um ato sapiencial: sabe quando falar e quando calar; aprende a dominar seus impulsos e pensa e repensa antes de agir. Outros, conscientemente, fazem um esforço significativo para conter-se e guardar a justa medida. Revelando, assim, maturidade e  capacidade de autodomínio.

    Poderíamos identificar a justa medida também no âmbito do exercício do poder, na condução de uma comunidade, na liderança política e mesmo nos embates de ideias.

    Refazer o contrato natural com a Terra

    Como participantes da natureza e com a capacidade de intervir nela, faz-se mister uma referência importante sobre o Contrato Natural entre a Terra e a Humanidade. Esse contrato é dado e não feito. Ao existirmos, recebemos tudo o que precisamos da Mãe Terra, o solo, o ar, as águas, toda sorte de alimentos, os climas favoráveis à vida, numa palavra, todos os componentes que permitem a vida subsistir e se reproduzir. Como em todo o contrato, vigora sempre uma contrapartida: cada qual deve cumprir a sua parte.

    Inicialmente os seres humanos viviam o contrato natural sem precisar pensar nele. A Mãe Terra lhes oferecia em abundância os meios de vida. A Mãe Terra era amada, zelosamente respeitada e cuidada em seus ritmos naturais. 

    Isso foi feito de modo exemplar sob o matriarcado há pelo menos 20 mil anos. As mulheres sentiam especial naturalidade com a Mãe Terra, pois ambas geravam vida.

    Tempos se passaram e o homem-masculinizado, acumulou poder e impôs a sua vontade e seus propósitos. Dominou as mulheres e junto com elas,  submeteu também a natureza. Lentamente, mas de forma crescente, se rompeu o Contrato Natural. A Matriz Relacional, aquela sagrada relação de todos com todos, se perdeu. O ser humano sentiu-se dono da natureza e não parte dela.

    A Terra já não era tida como Mãe generosa, mas como uma “coisa extensa”, sem propósito, tal qual  um celeiro cheio de recursos, disponíveis ao bel-prazer dos homens.

    Nos tempos atuais o Contrato Natural foi totalmente rompido, a ponto de a Terra fazer sentir a gravidade desta ruptura pelos desarranjos naturais que começaram a aparecer.  Os humanos, consoante a natureza de todo contrato, deixaram de cuidar da Mãe Terra, de seus biomas, de suas florestas, de suas águas e de seus solos. Antes, a agrediram. 

    O atual alarme climático planetário é uma das expressões do sepultamento do Contrato Natural. Hoje, mais do que nunca, urge refazer o Contrato Natural. Este implica de nossa parte um sentimento de respeito, de cuidado, de sinergia e do estabelecimento de um laço afetivo com a Terra e com todos os seus elementos. Aqui emerge o valor eminente da justa medida, da autocontenção de nosso impulso de possuir mais e mais, de respeitar a identidade de cada ser e também de seus direitos intrínsecos.

    Se não restabelecermos os termos justos deste Contrato Natural e o articularmos com o Contrato Social, aquele que regula a sociedade, aplicaremos em vão a ciência e a técnica para recuperar os danos já perpetrados. O decisivo consiste em fundar um laço afetivo com a Terra e tratá-la como a Mãe Terra, a Magna Mater, a Pacha Mama e Gaia. Só com a justa medida e a sinergia entre ambas as grandezas, abriremos uma janela para um futuro esperançador.

    Leonardo Boff escreveu O doloroso parto da Mãe Terra: uma sociedade de fraternidade sem fronteiras e de amizade social, Vozes, 2021.

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