
A história da criação de um poema
Sei que, nem sempre, temos a oportunidade conhecer o processo de composição de uma obra de arte. Fala-se muito de inspiração. Mas, em se tratando de um belo poema, há também transpiração. Às vezes, a percepção vai além da inspiração. A verdade é que o escrever continuamente sedimenta o estilo, aprimora o desempenho. O saber fazer passa por um processo de aprendizagem e requer treinamento. O exercitar ajuda a aperfeiçoar as habilidades. Competentes são aqueles que não se deixam atrofiar pela prepotência, nem pela arrogância.
O ato de ler favorece a verbalização do pensamento. É preciso ter intimidade com os códigos linguísticos. Nenhum ser humano é capaz de quantificar as palavras existentes no seu universo vocabular. Algumas pessoas possuem um volume maior do que outras em função da própria vivência. Há palavras que hibernam no silêncio, só aparecem no momento necessário. Às vezes, até pela falta de convivência, encontramos dificuldades para grafá-las. Na hora de escrever, pairam dúvidas: é com “s” ou com “z”, “x” ou “ch”, “ss” ou “ç”; tem “h”?…
Hoje quero lhe contar a história de um poema que tive a grata satisfação de testemunhar:
Fui a São Paulo com o propósito vivenciar a páscoa ao lado do povo em situação de rua. Há três anos que tenho ido à capital paulista com um grupo de amigos para compartilhar as lições do calvário. É um ato de partilha, não se trata de retiro espiritual. Portanto, isso não nos impede de passar pela Liberdade, nem de caminhar pela Paulista, nem de entrar em alguma livraria, nem de garimpar no Sebo do saudoso senhor Messias. E foi lá onde tudo começou: encontrei uma raridade, o livro “Ocupação” com poemas de Angenor de Oliveira, popularmente conhecido como Mestre Cartola. Não me contive, meus olhos brilhavam sobre o garimpado. Vendo o meu estado de êxtase, um amigo me disse:
– Acho que, na outra encarnação, você foi cupim…
– Por quê?…
– Você adora um papel…
Isso aconteceu na quinta-feira. Na sexta-feira santa, tivemos a alegria de contar com a presença do amigo J. Thomaz Filho, para mim, um dos maiores compositores de música sacra do nosso País. Algumas de suas letras, já considero de domínio público. Quem é católico e tem o hábito de ir à missa já ouviu:
“Vejam, eu andei pelas vilas, apontei as saídas como o Pai me pediu./ Portas, eu cheguei para abri-las, eu curei as feridas como nunca se viu./ Por onde formos também nós, que brilhe a tua luz!/ Fala, Senhor, na nossa voz, em nossa vida./ Nosso caminho, então conduz, queremos ser assim! Que o pão da vida nos revigore no nosso ‘sim’!”
Depois que participamos da celebração da Paixão de Cristo na Igreja São Miguel Arcanjo, voltamos para casa e retomamos as nossas discussões. E dessa vez, lemos o poema “Anjo Mau”, que Cartola fez depois que teve conhecimento da doença que o levou à morte:
“Eu queria que Jesus/ Um dia a terra voltasse/ Mas temo que muita gente/ Na cruz de novo o pregasse/ De que cratera saístes/ Em que lodaçal brotastes/ Porque fizestes tão mal/ Nos lugares que passastes?/ Porque este olhar satânico/ Que força mal te conduz/ Eu noto ficas em pânico/ Quando deparas a cruz/ Porque disfarças um sorriso/ Quando vês alguém no leito/ Em bom som dizes coitado/ Depois sussurras bem feito/ Porque não foges p’ras trevas/ Igual um cão acuado/ Embrenha-te no infinito/ E deixa-nos sossegado”.
No sábado pela manhã, o Thomaz voltou a Piracaia, cidade em que reside. E, na companhia de outro amigo, voltei ao Sebo do Messias. Dessa vez, tivemos uma aula sobre os cuidados que um livro deve ter antes de ser exposto à venda. Mergulhei em um mar de obras raras…
No final da tarde, recebi um poema inédito com o título “Com toda fé” do Thomaz, com esta observação: “veja o que o Cartola me provocou”.
“Você fez tudo errado em Nazaré/ e desencaminhou, na Galileia?/ E então Jerusalém, com toda a fé,/ firmou-se, com o povo em assembleia?/ Pilatos bem mostrou quem ele é…/ Passar fazendo o bem faz tanto mal?/ Nascer em manjedoura foi ideia/ um tanto desastrosa? Foi fatal/ gratuito perdoar a gente hebreia?/ Dar voz, ouvido e pão é ilegal?/ E a cruz? Esse castigo está de pé?…/ Você ressuscitou!… De quem o aval?”
Na segunda-feira, voltamos à Igreja São Miguel Arcanjo, após a triste notícia do falecimento do Papa Francisco que, em apoio ao trabalho feito ao lado do povo em situação de rua, doou um solidéu, que é guardado como uma relíquia de um gesto de carinho. Nesse dia, no café da manhã servido, havia um triste sentimento como a perda da proteção de um pai acolhedor…