• A guerra de Putin (só dele) contra a Ucrânia

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  • 12/03/2022 09:34
    Por Gastão Reis

    O tema da guerra está na (des)ordem do dia. Dando uma olhada em minha biblioteca, me deparei com o livro “Uma História da Guerra”, do renomado historiador militar John Keegan, publicado em 1993 e, no Brasil, em 2006. Era chegada a hora de lê-lo. Fiquei surpreso com a qualidade do texto, a perspicácia do autor e suas informações fundamentadas. Mais ainda: desmonta certos figurões que escreveram sobre o assunto, que se tornaram clássicos na área, como o livro “Da Guerra”, de autoria de Carl von Clausewitz.

    Logo na introdução, Keegan faz uma observação sobre os valores que norteiam o dia a dia dos militares. Dinheiro não é o valor último, assim como subir na carreira também não o é. O comportamento de seus comandantes, como homem entre homens, ocupava o primeiro lugar. Isso envolvia não só oficiais, mas também sargentos e soldados. “Não é bom com soldados” era uma condenação definitiva. Keegan não menciona, mas cabe relembrar que os romanos tinham a mesma visão ao afirmarem que todo soldado tinha direito a um bom comandante. Sabedoria de mais de dois mil anos.

    Pouco importava, se um oficial fosse inteligente, competente e trabalhador, mas se não passasse nesse teste de avaliação dos soldados, nenhuma de suas qualidades compensaria. “Ele não pertencia à tribo”, nos informa Keegan. O nosso Caxias passaria galhardamente no teste, pois deu provas de seu respeito por seus soldados diversas vezes. Ao levar quase um ano planejando a rápida Dezembrada, que pôs fim à guerra do Paraguai, comprovou seu respeito por seus comandados. Quanto aos vencidos, jamais tripudiou sobre eles.

    Keegan começa questionando a famosa frase de Clausewitz, aquela que nos diz que “a guerra é a continuação da política por outros meios”. Refletindo mais detidamente sobre a frase, me dei conta de que Keegan tinha suas razões. Se a guerra é uma mera continuação da política, Clausewitz está nos dizendo que a política tem caráter de conflito latente. Ao pensarmos sobre a visão política na Grécia Clássica, no Império Romano e na história da humanidade, nossa primeira reação é que, de fato, ele estava com razão.

    Indo, entretanto, mais a fundo, a Pax Romana evidencia, por estranho que possa parecer a princípio, a preocupação política dos romanos com a paz. E houve de fato períodos significativos de tranquilidade. A famosa obra de Marguerite Yourcenar, “Memórias de Adriano”, imperador romano, nos revela que ele prezava as virtudes de uma política da paz, pois reconhecia que as guerras acabam sendo prejudiciais ao comércio e à criação de riqueza. O tamanho do estrago que elas provocam pode ser medido pelo que ocorreu com Roma: de um milhão de habitantes, nos tempos áureos, ficou reduzida a 10 mil habitantes após as invasões bárbaras que puseram abaixo o Império.

    Vamos agora a esse “cavaleiro” de triste figura chamado Putin. A primeira coisa a ter em mente é que Putin é cria da KGB – Serviço Secreto da antiga URSS. Pense nos dez mandamentos da milenar tradição cristã e os recite na ordem oposta. Não matarás, vira matarás e assim por diante. Lênin tem um decálogo que é a negação radical dos preceitos cristãos.

    Um diálogo entre Lênin e Trotsky nos dias incertos do início da Revolução Russa nos revela a que ponto pode chegar a desumanidade de ambos. Trotsky diz a Lênin que era preciso criar o Exército Vermelho para consolidar a revolução. E que iria usar os oficiais czaristas para organizá-lo. “Você está maluco”, disse Lênin, “eles são todos monarquistas! Como confiar neles?” Trotsky responde calmamente: “Muito simples, vou lhes dizer que qualquer traição será punida com a morte de toda sua família.” E Lênin aprova, dando aquele sorrisinho diabólico de quem já contratou vaga no inferno…

    Cabe agora demonstrar a crítica contundente que Keegan faz a Clausewitz, discordando da posição dele de que a guerra é a continuação da política, ressaltando o protagonismo da cultura.

    Keegan vai no fígado de Clausewitz ao afirmar: “Se sua mente tivesse apenas mais uma dimensão intelectual (…), talvez pudesse ter percebido que a guerra abarca muito mais que a política, que é sempre uma expressão de cultura, com frequência um determinante de formas culturais, e em algumas sociedades, é a própria cultura”. Esta colocação de Keegan emite luzes para entendermos, sem desculpá-lo, a mente de Putin, e o longo histórico de guerras da Rússia, inclusive contra os povos dominados e os que tentaram se opor, por exemplo, às truculências de Stálin.

    A expressão Holodomor, “Morte pela fome”, configura a tragédia que matou de inanição, a mando de Stálin, mais de 3 milhões de ucranianos entre 1932 e 1933. As colheitas lhes eram confiscadas para encher a barriga da vastíssima nomenklatura em Moscou, trabalhadores técnicos qualificados e mesmo artistas e escritores fiéis à podridão do regime.

    O drama de Putin é que ele foi surpreendido pela escalada das reações do Ocidente a seus desatinos. A exclusão da Rússia do SWFIT, sigla em inglês para Sociedade de Telecomunicações Financeiras Mundial, o congelamento dos ativos dos bancos russos e até o confisco de bens dos oligarcas russos, aqueles (entre eles Putin) que odeiam ser atingidos, especialmente em seu “órgão” mais sensível, o bolso, e que podem lhe tirar a escada. E ainda as manifestações contra a guerra na própria Rússia e nas redes sociais internacionais compõem um conjunto de forças que Putin não esperava ter de enfrentar.

    A tudo isso se soma a heroica resistência do povo ucraniano com apoio da opinião pública mundial pela paz, até mesmo da China. As ameaças nucleares de Putin preocupam, mas ele sabe que o Ocidente também está em alerta máximo. Se ele apertar o botão, a Rússia e a própria humanidade caminhariam para a extinção. Tendo em vista tudo isso, e algumas concessões do governo ucraniano (a despeito de novos bombardeios aqui e ali), parece que Putin estaria começando a pensar no cessar-fogo Talvez seja a previsão de Keegan de que a cultura da paz estaria em seu nascedouro. Será?

    (*) Vídeo do autor, “Stálin ainda vive no Brasil do PT”, gravado, há dois anos, complementar ao artigo, e pode ser visto clicando no link:

    https://www.youtube.com/watch?v=4ef1qBzjv3k

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