• A gênese da (suposta) burrice portuguesa

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  • 16/12/2023 08:00
    Por Gastão Reis

    Tenho dado tratos à bola buscando entender quando teve início a propalada burrice do português. O primeiro clarão me veio ao relembrar de uma palestra do Prof. Carlos Lessa, em Natal, nos idos de 2008, num evento sobre empreendedorismo. Ele mencionou de passagem que o Brasileiro  (B maiúsculo para relembrar os bons tempos), ao longo do século XIX, não teve um problema de baixa autoestima tamanho era o respeito, interno e externo, pelo Império do Brasil e pela figura de D. Pedro II.

    Além disso, a dinastia de Bragança, do ponto de vista político, nos brindou com a constituição de 1824, que foi a que mais durou em nossa História, em boa medida, por ter um dispositivo constitucional, o poder moderador, que coibia os desmandos da classe dirigente. E não usada para oprimir o povo. Nossos vizinhos de língua espanhola reconheciam a excepcionalidade brasileira com uma ponta de inveja face à turbulência política que os assaltava desde o início de sua independência nos albores do século XIX.

    Não só isso. Quem conhece o que foi a educação de D. Pedro I, alfabetizado simultaneamente em latim e português; de D. Pedro II, através das “Instruções” do Marquês de Itanhaém aos preceptores do imperial pupilo; e da Princesa Isabel, pela amplitude das diversas disciplinas que estudou a fundo, realmente conhece bem o preparo intelectual dessas grandes figuras de nossa História. E do respeito que gozavam junto à população. O clima era de reverência à inteligência de origem lusitana, que nos manteve no rumo certo até 1889.

    Logo, não é um despropósito afirmar que a narrativa da burrice lusitana nasceu com a chegada da república. Seu início foi marcado por um esforço concentrado em direção ao apagão da memória da monarquia, vale dizer, nacional. Em Petrópolis, por exemplo, a principal via da cidade, que era denominada Rua do Imperador, passou a se chamar, por mais de um século, Av.15 de Novembro. Felizmente, nos últimos anos, voltou a ter o nome original.

    Essa arrogância dos tempos iniciais da república, marcada pela sistemática desvalorização da obra da monarquia que nos veio de Portugal, passa a ser vis-ta como um período a ser apagado.E até motivo de vergonha. É um passo curto ir da vergonha para a narrativa da burrice do colonizador português nesse processo de desmonte de um passado que deveria ser tratado com respeito. Não obstante, além das já existentes esquecidas, novas e sólidas pesquisas vieram à tona no início do terceiro milênio, permitindo que fatos comprovados viessem à tona para nos revelar a real História brasileira.

    Nessa linha, resumo e traduzo a seguir o Abstract, em inglês, do estudo, de 2022, intitulado “Estagnação Secular? Uma nova visão sobre o crescimento do Brasil ao longo do século XIX”, de autoria dos Professores Edmar Bacha, Guilherme Tombolo e Flávio Versiani, que nos diz o seguinte: “A historiografia econômica consolidada afirma que o PIB real per capita brasileiro estagnou no século XIX, e que ele cresceu muito devagar no período monárquico (1822-1889). Nós contra-argumentamos que estas conclusões estão baseadas em métodos inadequados e evidência estatística insuficiente. Trabalhando com base na metodologia de Tombolo (2013) e fazendo uso de nova base de dados, nós estimamos que, ao longo do período 1820-1900, a renda real per capita do Brasil manteve uma tendência de taxa de crescimento de 0,9% ao ano, um desempenho semelhante ao crescimento da Europa Ocidental e de outros países latino-americanos na época. Foi apenas uma forte contração econômica, no final do período (já republicano, digo eu), que arrefeceu o desempenho do Brasil no século XIX.”  

    O que há de revelador nesse estudo é o fato de o Brasil ter sido capaz de acompanhar o crescimento econômico do resto do mundo, exceto dos EUA, um caso único. Como foi ressaltado, a historiografia tradicional consolidada é que está em maus lençóis. Cabe reforçar o argumento, levando em conta o fato de que, ao longo do II Reinado, a população brasileira dobrou e o orçamento do Império decuplicou. Como este guarda estreita relação com a renda nacional, não é surpreendente a conclusão dos referidos professores sobre o crescimento da renda real per capita na faixa de 0,9% ao ano, podendo até ter sido maior.

    Casando agora a qualidade político-institucional do Império com seu bom desempenho na economia, é lícito afirmar que foi bem sucedido nos dois planos cruciais para levar um país adiante. Ou seja, têm carradas de razão o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, e o ex-ministro da Economia, Paulo Guedes, quando afirmam que o Brasil estaria em outro patamar caso a monarquia parlamentar tivesse sido mantida.

    No meu livro, “História da Autoestima Nacional”, no Prefácio, faço um cálculo simples para comprovar o efeito gigantesco, ao longo de cem anos, do crescimento do PIB de 1% ao ano a mais em função da qualidade político-institucional de um dado país. Isto resultaria num PIB duas vezes e meia maior,  se a média tivesse subido de 3 para 4% de aumento anual do PIB.

    Certamente nossa autoimagem seria muito diferente se tivéssemos tido uma renda per capita que estivesse na faixa de 60 ou 70% da americana como ocorria no fim da época do Brasil Colônia. Ou mesmo, no fim do Império. E não como é hoje em que nos situamos na faixa de apenas 25% da atual renda real per capita dos EUA pelo critério do PPP (Paridade do Poder de compra).  

    Assim, é bastante razoável concluir que a narrativa da burrice lusitana não teria prosperado, tanto e injustamente, desde 1889. É claro que a piada do português burro teve um revide dos lusitanos que se divertem com a piada do brasileiro nada inteligente. As diversas situações de instabilidade político-econômica, agravadas pelo regime republicano, nos revelam o tempo histórico desperdiçado. E autorizam os lusitanos a nos olhar hoje com certo grau de ressentimento. A herança que nos deixaram em termos político-institucionais e econômicos até 1889 teria funcionado bem melhor sem espaço para piadas bobas e autodepreciativas. Rir dos antepassados sem razão é que é burrice. Nossa, e não deles.      

    Assista “Dois Minutos com Gastão Reis: História do Brasil mal contada”. 

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