• 23/fev 08:00
    Por Ataualpa A. P. Filho

    Em qualquer ambiente social, o ser livre tem limites. Não se trata de proibições, mas de respeito. Falo isso, porque, em período carnavalesco, há os que pensam que vale tudo nos dias de folia. E assim, abusam em uma explícita violação dos princípios morais. Não se trata de puritanismo, mas da instituição da respeitabilidade, principalmente no que se refere à dignidade das mulheres, pois são elas que mais sofrem com os assédios, com as agressões.

    É plenamente compreensível a animação dos foliões imersos em fantasias. Há os que esperam o ano inteiro por esses dias em que é possível desligar da dura realidade. É visível a catarse que ocorre nesse período. Há também os que vivem fantasiados, encenando durante o ano todo. Mas, quando chega neste período, assumem o que verdadeiramente gostariam de ser em outra realidade.

    O pular, o dançar, o cantar coletivamente ao som de uma banda podem expressar a alegria de um povo. Mas a euforia não traduz felicidade. Temos uma cultural popular bastante lúdica, acolhedora. Contudo é preciso que se diga que o carnaval é visto também como um período de aquecimento da economia do País. Giram em torno dele empreendimentos lucrativos. Gera emprego. Movimenta o comércio pelo aumento do consumo. A rede hoteleira lucra com o turismo. Em suma, o carnaval não se restringe à folia de Momo. Há interesses econômicos que exploram essa manifestação popular.

    Vale lembrar que o carnaval já teve um cunho religioso, pois acontece no período que antecede a Quaresma, época de jejum, abstinências, penitências, ou seja, época de preparação para a Páscoa. Com isso, antes, havia a ideia de que era preciso “afastar-se da carne”, “retirar a carne”, “carnis levale” (expressão latina na qual reside a origem da palavra “carnaval”). Veio assim a “festa da carne”. Comia-se carne antes de entrar na Quaresma. E, nessas festas, havia excessos. O que não difere muito dos nossos dias: muita bebida, muita comida, muita orgia…

    No calendário, o feriado propriamente dito é registrado na terça-feira, antes da quarta-feira de cinzas, dia em que começa o período quaresmal.

    Tenho alguns amigos que fazem algumas abstinências hercúleas para quem vive conectado nas redes sociais: saem de todos os grupos do WhatsApp. Uns até deixam de comer chocolate; outros deixam de ingerir bebidas alcóolicas. Cada um reza conforme a sua consciência…

    Em período carnavalesco, há os que optam pelos retiros espirituais, buscam o silêncio para meditar. Desejam encontrar-se. Fogem da agitação.

    Eu procuro fazer o que já faço normalmente: ler. Explico: há livro que não é possível ser lido em sala de espera dos consultórios médicos, nem em fila do INSS, nem em ônibus. Há livros que exigem uma concentração maior. Tais livros, pego-os para ler nesses dias em que o tempo é um pouco mais esticado. Com uma cajuína do lado, “vamos pra folia”…

    Nasci na Vila Operária, em Teresina. Na minha época de menino, o bairro era tido como o berço do samba. Havia duas escolas que se rivalizavam na avenida: “Escravo do Samba” e “Império do Samba”. Eu torcia por esta, porque a sede ficava mais próxima de casa e achava que as letras de seus sambas-enredo eram melhores. Até hoje admiro o poder de síntese dos compositores de samba-enredo.

    Sei que posso ser tachado de saudosista, mas, com licença, abram alas para as canções de carnavais passados que estão eternizadas na memória do povo: “Bandeira Branca” de Max Nunes e Laércio Alves, “Máscara Negra” de Zé Keti, “Ô Abre Alas” de Chiquinha Gonzaga, composta em 1899.

    Marchinhas como “O Teu Cabelo não Nega” e “Índio Quer Apito”, consideradas politicamente incorretas, caíram no gosto popular como o “Atirei o pau no gato”, mas sem as conotações pejorativas que são atribuídas a elas.

    “Tá legal/ tá legal,/ eu aceito o argumento/ mas não me altere o samba tanto assim/ olha que a rapaziada está sentindo a falta/ de um cavaco, de um pandeiro ou de um tamborim”. Não sou de nenhuma velha guarda, mas me incluo nessa rapaziada que o Paulinho da Viola falou. Estou sentindo a falta dos sambas de raiz, com matriz brasileira para se dançar em gafieira sem pinote.

    Concordei com Noel Rosa quando afirmou que “o samba na realidade não vem do morro/ nem lá da cidade/ E quem suportar uma paixão/ sentirá que o samba então/ nasce do coração”.

    Em “Feitio de Oração”, esse compositor de Vila Isabel, cantou: “Batuque é um privilégio/ ninguém aprende samba no colégio/ sambar é chorar de alegria/ é sorrir de nostalgia/ dentro da melodia”.

    O verdadeiro samba é poesia popular, vem da alma do povo. Para mim, carnaval é a manifestação espontânea que pipoca nas ruas. Esse industrializado para ser assistido de camarote, de arquibancada com abadá estilizado é “para inglês ver.”

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