• A ética de um capitalismo selvagem: a corrupção das Americanas

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  • 12/02/2023 08:00
    Por Leonardo Boff

    O rombo bilionário, acumulado durante anos da gigante varejista das Lojas Americanas de 20 bilhões de reais, acrescido com as dívidas de 43 bilhões de reais tem muitas facetas. A mais explícita e vergonhosa é qualificar a corrupção que se esconde atrás desses números é o eufemismo “inconsistências contábeis”. O mercado sempre sensível a qualquer pequeno movimento que favoreça os despossuídos pelo Estado de viés social, logo reage criticamente. Face a esses bilhões não mostrou nenhum movimento. Claro, trata-se da cumplicidade das mesmas máfias financeiras, especialmente, as especulativas que ganham sem produzir nada.

    Os nomes dos principais “sócios referenciais”(os reais donos) são os conhecidos bilionários Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira que com outros bens que possuem como Burger King, Kraft Heinz e particularmente o controle do mercado cervejeiro com a InBev alcançam 185 bilhões de reais.

    Na nota publicada pelo trio no dia 11 de janeiro de 2023 se exime de qualquer conhecimento, fazendo dos leitores que conhecem como funciona o capitalismo brasileiro, de otários.

    Não me cabe aprofundar esta questão, feita por especialistas. Atenho-me ao que me cabe como professor de ética e teologia por muitos anos.

    O que aqui ocorreu confirma o que o saudoso Darcy Ribeiro frequentemente afirmava: o capitalismo brasileiro nunca foi civilizado, é um dos mais selvagens do mundo e profundamente egoísta e individualista. Isto nos faz remete ao que o amigo do  Brasil (sua esposa é brasileira),um dos maiores pensadores da atualidade,o filósofo e linguista Noam Chomsky disse com tristeza:”nunca vi em minha vida uma porção da elite brasileira ter tanto desprezo e ódio aos negros e as pobres da periferia”.Isso o confirma em sua vasta obra o sociólogo Jessé Souza, especialmente no clássico A elite do atraso: esta elite marginalizou vergonhosamente grande parte da população pobre e negra,negou-lhes direitos,desconheceu que são humanos como eles e filhos e filhas de Deus. Quando se levantaram, foram logo reprimidos e até assassinados.

    Numa outra passagem enfatiza Noam Chomsky o que nos faz entender nossos corruptos (especialmente o trio, sempre sorridente):” A ideia básica que atravessa a história moderna e o liberalismo moderno é a de que o público deve ser marginalizado. O público, em geral, é visto como nada além de excluídos ignorantes que interferem como o gado desorientado”. O que interessa ao capitalismo é ter consumidores e não cidadãos. Não ama as pessoas apenas sua força de trabalho e a eventual capacidade de consumir.

    Já Aristóteles, um dos pais da ética ocidental, dizia que o primeiro sinal da falta de ética é a “falta de vergonha”.Etimologicamente vergonha vem do latim vereor que significa respeito temor reverencial. Quando falta esse valor de respeito e reverência face ao semelhante, está aberta a porta a qualquer tipo de vergonhice.

    Os corruptos dos 20 bilhõe das Americanas não mostram a menor vergonha: mostram-se benfeitores da sociedade, apoiando algumas pessoas (as mais dotadas) para estudarem nas melhores universidades do mundo (ex.Harvard), para serem educados no espírito do capitalismo e levarem avante seus projetos.  Não se trata, como é o caso de muitas universidades norte-americanas que são apoiadas por grandes corporações que favorecem sua manutenção e a pesquisa. Os nossos opulentos  praticam apenas ajudas pontuais a pessoas distinguidas e não a ajuda os grandes projetos educacionais que beneficia a nação inteira a avançar rumo ao conhecimento e à autonomia.

    O mais doloroso, no entanto, é a absoluta falta de sensibilidde da elite do atraso (que  no dizer de nosso maior historiador mulato Capistrano de Abreu “capou e recapou,sangrou e ressagrou” a população que saía do regime colonial, mas mantinha a escravidão).

    Essa ausência culposa de sensibilidade foi denunciada frequentemente por um dos mais beneméritos brasileiros dos projetos contra a fome, pela vida e pela democracia o sempre recordado Betinho:

    ”O nosso problema maior não é econômico, não é o político, não é o ideológico nem é religioso. O nosso problema maior é a falta de sensibilidade pelo nosso semelhante que está ao nosso lado”. Não ouvimos seu grito de dor, não vemos a mão estendida esperando um pouco de comida, sequer vemos seus olhos suplicantes. Passamos ao largo do caído à beira da estrada, como biblicamente fizeram o levita e o sacerdote na parábola do bom samaritano. Foi preciso que um desprezado herege samaritano interrompesse sua viagem,curasse suas feridas e o tivesse levado ao sanatório, deixando tudo pago e se mais precisasse pagaria na volta. Quem é aqui o próximo, indagava o Mestre: é aquele de quem eu me aproximo,não reparando sua condição moral, sua religião, sua cor. É um irmão ferido que precisa de outro irmão para socorrê-lo.

    No Brasil, os cristãos são apenas cristãos culturais que não aprenderam nada do Jesus histórico que estava sempre do lado da vida, do pobre, do cego, do coxo e do desprezado.Por isso há tanta desigualdade social, das maiores do  mundo. Porque falta sensibilidade, solidariedade, sentido humano, o de tratar humanamente outro humano, seu irmão e irmã.

    O trio bilionário e os 318 milionários (segundo a revista Forbes) não ouvem o clamor que vem das grandes periferias, dos indígenas sendo dizimados por alguns do agronegócio como em Dourados-MT e aos milhares de yanomami, violentados pelo garimpo ilegal e a quem oficialmente por parte do governo genocida se negou água,vacinas,assistência média e nutrição básica.

    No caso do Brasil, mas vale para grande parte da humanidade, faltou ética e faltou moral. Faltou ética, se entendemos por ética a promoção de uma vida boa e decente para todos. Faltou moral se entendermos por moral a observância das normas e leis que a sociedade estabeleceu para si mesma para garantir uma vida boa, boa e decente.

    Ora faltou ética e moral nos causadores do rombo milionário das Americanas. Não sabiam dos 33 milhões de famintos em nosso país e dos mais de cem milhões com insuficiência nutricional. Se tivessem um mínimo de sensibilidade ética e moral secundária com suas fortunas poderiam diminuir esta tragédia humana.E assim continuamos com a selvageria de nossa cultura capitalista que através do mercado tenta controlar a economia do país,especialmente se esta for direcionado para os que mais precisam.

    Recordo a clássica frase do filósofo Heráclito (500 aC) que bem disse: “o ethos é o anjo bom do ser humano”. Entre nós o ethos se mostrou demoníaco.
    Leonardo Boff, filósofo e  teólogo e escreveu, Ética da vida, Record 2009; Ética e moral: a busca dos fundamentos. Vozes 2003.

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