‘A cultura é inimiga dos políticos’, diz cineasta
Como único cineasta russo na competição do 75º Festival de Cannes, com Tchaikovsky’s Wife (A Mulher de Tchaikovski, na tradução livre), Kirill Serebrennikov tem sido obrigado a responder muito pelo seu país de nascimento, a Rússia, e sobre a guerra na Ucrânia. Não que ele se importe de falar de política. “A cultura é política. Não é sobre política, é política”, disse ele em entrevista com a participação do Estadão. “As obras de arte nos fazem pensar, sentir, nos fazem mudar de posição. E por isso a cultura é inimiga dos políticos. Eles preferem a propaganda.”
Serebrennikov livrou-se das acusações de uso indevido de financiamento governamental e recebeu de volta o passaporte que o impediu de apresentar pessoalmente Verão (2018) e A Febre de Petrov (2021), em Cannes. Seus defensores dizem que foi um caso de perseguição por parte do governo de Vladimir Putin. Em março, Serebrennikov foi autorizado a deixar o país e se exilou em Berlim. “Eu fui inocentado, eles não tinham mais o que fazer comigo”, explicou. “Sou um inimigo. Fui pressionado por anos. Não gostam do meu cinema, do meu teatro. Então a melhor solução era se livrar de mim, me chutar.”
Indagado se acredita que, hoje, um artista pode se calar diante do que está acontecendo, ele disse que é uma pergunta difícil, mas que sua posição é óbvia. “Como cineasta, eu acho que preciso falar de política”, afirmou. “Como budista, eu não posso estar dentro da violência. Não sou contra a guerra porque desejo ter trabalho. Não é meu caso, mas muita gente que fugiu da Rússia recentemente perdeu tudo simplesmente porque não aceita fazer parte disso. Se você é russo, sente na pele que participa da guerra, da violência.” Ele afirmou, porém, que nem todos que permanecem na Rússia concordam com o que está ocorrendo. Muitos estão sendo presos apenas por segurar cartazes em branco. E que é muito doloroso, inclusive, para quem sai, pois quem fala russo imediatamente é identificado como apoiador de Putin.
Ele agradeceu à organização de Cannes por ter acolhido o filme, resistindo aos pedidos de que todas as produções russas fossem banidas. “Eu entendo, porque os ucranianos estão escondidos em porões, estão perdendo amigos em uma guerra real e um caos sangrento sem rumo”, observou.
Tchaikovsky’s Wife fala do casamento de Piotr Ilitch Tchaikovski e Antonina Miliukova. O compositor decidiu se casar para dar fim aos boatos sobre sua homossexualidade. Ele teve uma crise, e a separação levou sua mulher a ter problemas de saúde mental. “É interessante relatar uma história nunca contada”, lembrou Serebrennikov. “O filme é baseado na realidade, em cartas e diários. É quase um docudrama. O meu principal objetivo é contar aos russos algo mais sobre um gênio. Eles só sabem que é um grande compositor do qual temos de nos orgulhar, a estátua que devemos adorar.”
PONTE
Tchaikovski (1840-1893), acrescentou o diretor, foi considerado o primeiro compositor russo-europeu. “Ele é uma espécie de ponte entre a Rússia e a Europa, o resto do mundo. Ele era muito popular no Ocidente, o que fez com que seu sucesso na Rússia diminuísse. Havia uma atenção excessiva em cima dele por causa disso. Muitos o criticavam por ser uma cópia dos europeus. E essa é sempre uma questão na Rússia: o que é russo, o que não é russo?”
O filme também foca uma questão atual: é possível separar a obra do artista? Ou seja, podemos continuar gostando do trabalho mesmo quando o homem (ou a mulher) não é um bom ser humano? “Explorar isso era um dos meus interesses, porque algo que faz parte do sentimento russo é a peça de Alexander Pushkin, Mozart e Salieri, que discute se a genialidade e a maldade podem estar juntas em uma única pessoa.”
Serebrennikov realizou este filme para seus compatriotas. Mas sabe que dificilmente eles vão conseguir vê-lo nas salas de cinema. “A minha maior esperança é o século 21, que trouxe transparência. Então podem banir ou impedir a projeção. Mas há muitas possibilidades digitais para o filme. Eu não me preocupo com isso. Apenas lamento não poder mostrá-lo aos meus amigos e às pessoas que amo, ao público russo, o que seria bacana de fazer em um estado normal.”
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.