• A coroação de Charles III – Resumo e desinformação dos comentaristas

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  • 13/05/2023 11:50
    Por Gastão Reis

    A coroação do 40º rei inglês foi, sem dúvida, um espetáculo de gala que encantou o mundo. Teve pompa e circunstância. E substância, na qual prefiro me concentrar para entender o significado profundo do ato. Por fim, abordarei a questão dos comentaristas, que desconheciam realidades importantes.

    A primeira coisa que me chamou a atenção foi o fato de Charles III jurar formalmente que exercerá seu reinado e seus julgamentos com justiça e misericórdia. A combinação destas duas últimas palavras dá equilíbrio a situações em que a dureza da Lei pode levar a decisões injustas. Logo em seguida, ele se compromete a defender, nessa ordem, a Lei e a Igreja Anglicana, que pertence ao grupo das protestante. E o faz por escrito, assinando em baixo.

    Ato contínuo, o rei afirma que não veio para ser servido, e sim para servir. O chefe da Igreja Anglicana explicita que “sejamos conduzidos pelos caminhos da paz”. E continua: “Estamos aqui para coroar um rei. E coroar um rei para servir”. Menciona ainda que serviço é amor. E que o amor se torna real quando cuidamos de quem precisa. Sua vida é servir aos outros”. Ou seja, deixa claro que o amor ao próximo é um mandamento cristão a ser levado a sério pelo rei.

    No momento da imposição dos óleos sobre a cabeça, peito e mãos do rei, a privacidade foi preservada através de três painéis que ocultavam a figura do rei fazendo um “U” em torno dele, aberto apenas em direção ao altar. É considerado o momento mais sagrado da Coroação, em que o rei estabelece uma ligação direta com Deus em sua investidura. A rainha Elizabeth II, aparentemente após este momento, disse que se sentiu outra pessoa, como se tivesse renascido.

    A coroação se dá após a cerimônia dos óleos quando o Arcebispo de Canterbury coloca a coroa de Santo Eduardo, que pesa 2,2 quilos, sobre a cabeça do atual rei Charles III. É o único momento em essa coroa é usada. Ela nunca sai da catedral de Canterbury. O rei não recebe apenas a espada, mas fica claro que ele é ungido por Deus. Pouco depois, é pronunciado o famoso “God save the king”, o “Deus salve o rei”, que é repetido em pé pelos presentes. O rei recebe ainda duas pulseiras como símbolos de sabedoria e de justiça.

    Na sequência, o herdeiro do trono, príncipe William, coloca no rei um colar de pano e um manto de 4 quilos, simbolizando a justiça, tradição criada pelo rei George IV. Recebe ainda o cetro e a esfera armilar, símbolo do poder majestático. E ainda um anel real. Calça uma luva branca apenas na mão di-reita, que lhe confere autoridade com justiça e graça, palavras usadas no ato.

    A solenidade é feita numa igreja, e não numa repartição pública, o que dá bem a medida do peso do lado religioso na sagração de um rei.  A coroação de Charles III foi diferente da rainha Elizabeth II para se adaptar aos novos tempos. Um exemplo ilustrativo foi um grupo de seis cantores, mulheres e homens negros, que entoaram um belíssimo Aleluia em que faziam um ligeiro gingado com seus corpos.

    Uma comentarista de televisão bate na tecla do grande desafio do reinado de Charles III que é manter unido o Reino Unido, já que o apoio à monarquia caiu de 76%, sob Elizabeth II, para 56%, segundo as pesquisas, sendo menor ainda entre os jovens. Caberia a ele mostrar a importância da monarquia em termos de assegurar estabilidade política ao País.  

    Um momento muito especial da cerimônia foi quando todos os presentes juraram lealdade a Charles III. Inclusive o príncipe herdeiro William, que o fez pouco antes dos demais, cara a cara com seu pai, que se emocionou. As próprias Forças Armadas, ajoelhadas, também prestaram o juramento de lealdade ao rei e à rainha. Mas essa lealdade ao rei é feita dentro da Lei. Ou seja, o próprio rei está sujeito aos ditames da Lei. Tal ressalva confere à monarquia inglesa seu caráter democrático, pois a Lei está acima do rei.

    Vamos, agora, à desinformação dos comentaristas.

    A primeira delas é quanto aos gastos com a solenidade da coroação num momento em que a Inglaterra passa por dificuldades após a saída da Comunidade Europeia, o Brexit. Só esqueceram o lado da receita, bem maior, oriunda da venda das autorizações à mídia mundial para transmitir a cerimô-nia. Tem o sabor daquela crítica tola que propõe ao Vaticano vender todas suas obras de arte e bens e doar para os pobres. Benemerência de vida curta, pois ocorrerá apenas uma vez. Ou seja, a fonte de renda que o Vaticano obtém com eles permite que o apoio aos pobres e necessitados seja permanente.

    O segundo equívoco é usar o termo anacrônico para caracterizar o regime monárquico. As pesquisas constatam sempre que entre os países mais ricos e democráticos do mundo as monarquias constitucionais estão sempre nos primeiros lugares. Na verdade, são regimes do ponto de vista político-econômico bem sucedidos, situação que não é nada comum entre as repúblicas de um modo geral. As latino-americanos são um triste exemplo.

    Mas a grande falha dos comentaristas foi sequer tocar na questão que explica o sucesso das monarquias mencionado no parágrafo anterior. Ter um Chefe de Estado hereditário tem virtudes desconhecidas pelo grande público. E a razão é simples de explicar. Antes, porém, cabe esclarecer o papel do Chefe de Governo, que toca a parte administra.  Ele é eleito e depende de partidos para formar um gabinete, que só se sustenta se detiver a confiança do Parla-mento. Um simples voto de desconfiança pode derrubá-lo sem os traumas e delongas típicas dos processos de impeachment.

    Vamos, agora, às virtudes de ter um monarca como Chefe de Estado. Ele não depende de grupos econômicos ou partidários para ocupar sua posição. É hereditária, na tradição da aclamação geral dos povos. O monarca tem, forçosamente, visão de longo prazo para perpetuar a dinastia. Em função disso, seu interesse pessoal se confunde com o interesse público. Melhor ainda: é praticamente imune à corrupção. Como oferecer-lhe algo melhor que ele já não tenha? Nenhum Chefe de Estado eleito numa república atende a tais requisitos. Um monarca europeu certa vez disse que a função dele era defender o povo dos políticos. Eis as razões para funcionarem bem.   

    Nota: Dois Minutos com Gastão Reis: “Economia Esquizofrênica“.

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