• A Beleza e a Filologia

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  • 22/02/2023 08:00
    Por Fernando Costa

    Não tenho razão de queixas. Na infância fui alvejado por ótimas educadoras cuja luz se alastrou vida afora. Destarte, é  tempo de louvar e agradecer às mestras, pela ordem, no antigo curso primário, atual fundamental, Geny Gac, Sebastiana do Carmo, Sylvia Siqueira, Philadelphia Reis e Alice Maria Gac Coelho.

    Ponho ainda em relevo o nome da Dona Alfredina Egypto Cerqueira; não lecionou para mim, mas, me ensinava através de  seus exemplos e religiosidade, inclusive, me   permitia, participar das aulas em seus turnos  adiantados e, à noite alfabetizava gratuitamente inúmeros pais de famílias e empregados das fazendas Piabanha, Monte Alegre, Santo Amaro, Boca do  Fogo e cercanias. Delegava-me a tarefa de tomar a lição e corrigir as anotações daqueles guerreiros cujo sonho era, pelo menos assinar o nome…

    Residíamos próximos ao Colégio, um apanágio; quanto a mim, eu, queria mesmo era estudar. Falo sem ostentação. A base cultural tanto minha, quanto de incontáveis infantes e jovens foi  adquirida em escola pública, assim, a E. E. de Hermogênio Silva, mais tarde  E. E. Eduardo Duvivier, situada no 3º. Distrito de Três Rios é um desnudar em história e memória.

    Rendeu-me uma excelente prova para o “exame de admissão” ao ginásio. Nessa fase, se renovou o privilégio contar com os ensinamentos de ótimos pedagogos, dentre eles, Delfino da Silva Monteiro, ex-seminarista do antigo Caraça, MG. Lecionava, além de português, as cadeiras de inglês, francês, canto orfeônico e latim.

    Depois, várias dessas disciplinas foram abolidas ou se tornaram opcionais, se mantiveram, no entanto, as cadeiras de inglês e português.  Delfino era severo e  competente.

    Ao mesmo tempo temido, respeitado e querido por seus pupilos.  

    O aluno que conseguisse nota quatro se sentia feliz, nota cinco e daí por diante, em estado de graça.

    A chegada do expert à porta da sala de aulas era motivo de  um  silêncio sepulcral.

    Ai daquele que fosse pego colando, (expressão essa desconhecida à época do curso primário) olhar para os lados, nem pensar!

     As análises sintáticas e léxicas rondam minha mente, as orações coordenadas sindéticas e assindéticas, as conjunções adversativas, os períodos compostos por coordenação e subornação as funções do “que” “exempli gratia,” partícula expressiva de realce e outras conotações, as locuções, a concordância verbal e nominal, as famosas crases…

    Ele nos advertia que os acentos não eram para serem jogados no texto como se polvilhássemos um tempero na salada, mas, sim, colocados de forma correta.

    Crase, essa palavra que provém do grego (krâsis) desde cedo nos foi apresentada como significação de mistura. Pontificava ele: na língua portuguesa, ela significa fusão e é usada para indicar a junção de duas vogais iguais, ou seja, é a contração de dois “aa” com os artigos definidos femininos – a-as- ou com pronomes demonstrativos a, as, aquele, aquela e aquilo.

    A criançada não media esforços a gravar esse ensinamento.

    Apontava-nos: ocorrerão a crase se convergir duas condições: se o termo regente exigir a preposição “a” e se o termo regido aceitar o artigo feminino “a” (as), sendo obrigatória nos seguintes casos: a) na indicação do número de horas.

    Hora indica tempo e é uma palavra feminina. É um adjunto adverbial de tempo formado por palavra feminina, assim devemos usar o acento grave, a crase. b) nas locuções adverbiais, prepositivas e conjuntivas, com palavra feminina. Compro a vista ou à vista. Se a intenção é usar a expressão adverbial, a resposta, com certeza, é à vista.         

    Sem o acento grave, a pessoa que por ventura viesse a comprar uma vista de alguém estaria cometendo um crime. Imaginem só adolescentes de onze e doze anos fazendo esforço para assimilar essas informações. Mas nós nos esforçávamos.

    E lá vinham mais exemplos. Narrava – nos o professor: a expressão compra “a prazo” não se acentua porque é uma palavra masculina e nunca usamos crase antes de masculino. As locuções com palavra feminina tais como, ás ocultas, à noite, à direita, à força, à primeira vista, à toa, à direita, à mão, às cegas, à vontade e etc. são acentuadas. c) ele nos lembrava de que a expressão à moda de, mesmo que a palavra moda viesse oculta esse “a” é acentuado. Por exemplo, hoje irei ao Majórica, comerei um bife a milanesa ou à milanesa?

    A meninada em coro respondia, “à milanesa” E seguia o mestre, A expressão ” à moda de” ou “à maneira de” deveríamos usar o acento grave, a crase. A forma objetiva de ensinar nos cativava, ainda mais quando expunha: “usamos sapatos à (moda) Luis XVI, “Nós nos vestimos à(moda de) l950”, “escrevemos poesia à (à moda de, ao estilo) Drummond  de Andrade”.  Quando se falava da crase e seu uso facultativo exigia  nossa redobrada atenção.

    Ele alertava, antes de pronomes possessivos femininos o uso do acento indicativo de crase é facultativo, ou seja, depende da preferência de quem escreve, por exemplo, Maria referiu-se ” a minha” viagem ou “à minha” viagem. Oferecerei “as minhas colegas” de turma Julia, Regina e Leila um ramo de violetas ou “às minhas colegas”. Não me esqueço de quando ele nos alertava quanto ao uso da crase diante dos possessivos, principalmente depois do verbo, “se evita a ambiguidade.”

    Sobre a elipse do substantivo exemplificava: “faço referência a ( ou à) tua empresa. Os pronomes possessivos antecedidos de nomes de parentesco rejeitam a crase. Refiro-me  a sua irmã. E os nomes de lugares? Fui a ( ou à) África, a Espanha( ou à) e etc…

    Se escrevermos nomes de mulheres, Carmen, Christiane, Beth: Mandamos convite à Carmen ou a Carmen. Enviamos  flores a Christiane ou à Christiane. Enviamos dois mimos à Beth ou a Beth… Ás vezes as cabeças se embaralhavam, quando nos expunha: “a preposição “até” possui como variante a locução “até a”, é facultativo mesmo que venha seguido de demonstrativo “aquele”, “aquela” “aquilo”: Vou até a (à) farmácia. Foi até a( ou, à) porta.” Ele nos chamava a atenção para quando a frase contivesse a significação de ” até mesmo” perderia, como perde a variante, assim,  proseava ele, é substituída por um termo masculino: obedecia (até mesmo) às ordens mais extravagantes (até aos caprichos).

    Transcorreram-se mais de meio século e às vezes me vejo calado e atento,  sentado nas primeiras fileiras, para tentar absorver o máximo,  sabia que o mundo  me aguardava um dia iria me pedir prestação de contas.

    Guardo em meus alfarrábios e no escrínio de meu coração as apostilas em letras roxas, repletas de regras editadas pelo incansável preceptor, neste aprendizado que não finda.

    A informática, Microsoft Windows, Mac OS X e Linux. Microsoft Windows e outras modernidades não são capazes de apagar o meu ontem de menino de calças curtas, lápis de grafite e madeira, o giz, o apagador e o quadro negro.

    “A Última Flor do Lácio” do famoso poema de Olavo Bilac prossegue seu destino e, em 2009 nos trouxe algumas alterações: o alfabeto passou a ter 26 letras, as letras K, W e Y a ele foram incorporadas. O trema deixou de existir, exceto em nomes próprios; perderam o acento às paroxítonas, as homógrafas com algumas exceções e também, o emprego ou não do hífen. Estejamos alerta.

    Revivo os luminares de ontem, permanecem um facho de luz entremeado em amor, qual sarça ardente. Crepita e encandece. Os louros colhidos são vossos, deposito-os no Olimpo do benquerer. É o meu preito de amor e  gratidão. 

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