• A ausência do não esquecido

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  • 28/jul 08:00
    Por Ataualpa A. P. Filho

    Há história em que o personagem principal não participa dos fatos narrados, mas é quem a escuta. Quem a ouve, em ato de bondade, cede um pouco de silêncio. Escuta o que salta do peito em momento de dor ou de alegria. Por isso, de já, agradeço por ceder-me um pouco de tempo para acompanhar-me nestas mal traçadas linhas.

    Afirmo, despretensiosamente, que, no passado, há presentes antigos. Digo “presente antigo”, porque a memória não desarreda aquilo que o coração guarda.

    Quintana tinha razão ao afirmar que “o passado não reconhece o seu lugar: está sempre presente”.

    Para mim, passado é o nunca lembrado, o sepultado na história. Há fatos e pessoas que somem das nossas lembranças. Por outro lado, existem fatos e pessoas que sempre estão conosco em pensamento. Bastam uma canção, a cena de um filme, algumas palavras de afeto para que a saudade seja aflorada.

    Confesso que, às vezes, evito puxar o fio da lembrança para não devanear. Mas, às vezes, procuro passar pelos caminhos que já passei para encontrar pessoas que tanto estimo, que me ajudaram nesta caminhada. É uma delícia abraçar amigos e relembrar belos momentos. Refletir sobre o vivido…

    E assim, nesse pequeno recesso de julho, fui ao Piauí para rever os meus familiares. Entrei pela caatinga. Usei o celular apenas para fotografar. Procurei os espaços sem wi-fi. Precisava ver o tempo do começo. As pinturas rupestres, as formações rochosas esculpidas pelo tempo. Está provado: a nossa pele precisa de Sol…

    Reencontrar as nossas origens é uma forma de descalejar o coração. O destino, quando desatina, torna-nos retirantes. E, em ato de sobrevivências, buscamos outros espaços para aprumar a vida.

    Saí do Piauí, mas o Piauí nunca saiu de mim. Quando posso, corro para Teresina. A cajuína retém as minhas lágrimas.

    Dessa vez, na cidade em que nasci, bateu uma saudade do senhor Zezão, companheiro de trabalho do meu pai. Não sei o nome dele completo. Todos só o chamavam de Zezão. Era um cortador de vidros. Eu admirava como ele manejava o diamante: riscava, depois dava uma batitinha. Espelhos se partiam, conforme o desenho riscado. Meu pai tocava o lado da marcenaria. E ele ficava com a vidraçaria. Era um homem de poucas palavras. Quando eu ia à oficina em que trabalhavam, ele não queria que eu ficasse ao lado dele, pois poderia me cortar em algum caco de vidro. Contudo, eu gostava de vê-lo riscando espelhos milimetricamente medidos.

    Era visível o companheirismo entre os dois, porém eles não bebiam no mesmo bar. Nunca os vi juntos fora do local de trabalho. O Zezão, quando bebia ficava mais falante.  Futebol era o assunto sobre o qual ele mais soltava a língua. Era um flamenguista fanático. Torço pelo Flamengo por influência de ambos. Mas o Flamengo pelo qual eles mais torciam era o do Piauí, que, na época, rivalizava com o River.

    A oficina fechou. Não suportou a concorrência das redes de lojas que começaram a chegar à capital do Piauí. Eu ouvia os lamentos, mas não entendia as consequências de sistema econômico que privilegia os monopólios criados por grandes empresas.

    Acho que os primeiros que sentiram o impacto do chamado progresso, impulsionado pelo “Milagre Brasileiro” na década de 70, foram os sapateiros, os alfaiates, as costureiras. Grandes magazines chegaram ao Estado, vendendo roupas, calçados, eletrodomésticos em “suaves prestações” para dissimular as altas taxas de juros.

    As pessoas passaram a comprar roupas prontas, não mais o tecido para levar a uma costureira para que confeccionasse um vestido. Os calçados de material sintético “entraram na moda”, os tênis foram assimilados facilmente. Às costureiras, aos alfaiates, restaram os pequenos ajustes: a bainha de uma calça, um aperto da cintura, um ajuste no terno. Os sapateiros também eram mais solicitados para fazer pequenos reparos em sapatos usados, que foram comprados parceladamente em carnês.

    Os móveis de fórmica entraram no mercado. Também eram adquiridos na base do carnê com várias parcelas. Os marceneiros sentiram a desleal concorrência…

    Com o fim da oficina, o meu pai foi trabalhar na empresa de telefonia do Estado. O Zezão pegou o seu diamante e foi exercer o seu ofício em uma vidraçaria. Ambos já partiram. Mas carrego essa lembrança de dois companheiros que sentiram na pele as garras do sistema capitalista em um período ainda marcado pelas sequelas da Guerra Fria. A liberdade era curta…

    O Rio Maravilha e a Terra da Garoa, na época, eram rotas de fuga. Vim, vi e estou contando história. E também estou aqui para ouvir e não Olvidar.

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