
A abelha, o cravo e os pardais
Às vezes, abrimos os sentidos em busca de algo que possa ser trabalhado reflexivamente e compartilhado com o propósito de colocar o viver em evidência. E assim, propiciar algo que possa ajudar nesta travessia. Pensar é cavalgar dentro de si. Esse ofício “de viver em voz alta”, como afirmara o mestre Rubem Braga, tem a palavra como ferramenta de trabalho. Nele, o processo de aperfeiçoamento é contínuo. Escrever é deixar pegadas.
Na década de 70, Drummond publicou um livro com o seguinte título: “De notícias & não notícias faz-se a crônica”. Sinto-me mais atraído pelas “não notícias”, pelo o que não é explorado sensacionalisticamente. O silêncio do anonimato guarda sutilezas destiladas em concreta poesia. Fico atento aos fatos, porque não tenho habilidades para a ficção. Preciso aprender a me deslocar um pouco da realidade.
Na quarta-feira (02/04), como de hábito, acordei cedo, coloquei água nas plantas da varanda e frutas para os pássaros que me visitam. Os sanhaços, os bem-te-vis, cambacicas e beija-flores são os mais frequentes. Às vezes, aparecem sabiás, saíras. E, com menos frequência, o tiê-preto com a esposa. Como isso ocorre nas primeiras horas da manhã, não posso lhe dizer, com precisão, se outros visitantes aparecem por aqui em outros horários.
Após efetuar as tarefas matinais, sentei no sofá da sala com uma caneta e um papel apoiado em um livro, porque me sobraram alguns minutinhos antes de entrar no banho gelado para dar início à rotina. Tentei rascunhar um poema para os dias das mães a pedido de uma amiga educadora. Após escrever o título que pretendia dar ao poema, entrou uma abelha pela janela da varanda. Fiquei estático. Ela veio e posou na caneta. Uma abelhinha arapuã, pretinha, sem ferrão. Para mim, foi um momento de êxtase. Pensei: “palavra ‘mãe’ é doce! Até as abelhas são atraídas por ela…”
– O que é isso? – Perguntou a Marta.
– É uma abelha.
– Tá esperando ser picado por ela?…
Não respondi de imediato para não a espantar. Fiquei admirando as patinhas dela. Voava um pouquinho depois voltava…
– Não, não vai me ferir. Fique tranquila…
Ganhei o dia! Falei em pensamento com ela: “é abelhinha! Não tem espaço pra você neste poema. Mas da crônica, você não escapa…”
Não consegui concluir o poema. Mas o instante poético foi intensamente vivido. Confesso que me senti privilegiado: morar no nono andar de um prédio, em um centro urbano barulhento e ser visitado por uma abelha nas primeiras horas da manhã, considerei um privilégio. Se estivesse na roça, seria normal. Abelhas e marimbondos aparecem por aqui por causa das plantas e das frutas que coloco para os pássaros. Mas dessa vez, foi diferente. Creditei isso à “maternura”, o doce que há em “mãe”.
E, por falar em doçura, lembrei o dia em que fui a Conquista, município de Minas. A casa em que ficamos hospedados era tão tranquila que nem havia ambiente para o cravo brigar com a rosa.
Em terras mineiras, o cafezinho é imprescindível. Somos atraídos pelo cheiro. E quando peguei o açucareiro para adoçar o café, encontrei grãozinhos de cravo-da-índia.
– Por que há esses cravos no açúcar? – Indaguei.
– É para espantar as formigas.
– Essa, eu não sabia…
– As formigas não gostam do cheiro do cravo. Nem as abelhas ficam aqui em torno do açúcar.
Muito se aprende pela cultura popular, sem excesso de teorias. A prática nos ensina, porque exige mais dos nossos sentidos do que dos conceitos que só navegam no plano teórico.
E, por falar em teoria, sábado passado (29/03), após participar de uma reunião acadêmica, ao voltar para casa, tive a grata satisfação de ter a companhia de um mestre filósofo, com quem muito tenho aprendido. Sempre que posso, peço-lhe algumas explicações. E nessa pequena caminhada, pedi que me explicasse a origem etimológica da palavra “teoria”. Mas antes de iniciar a explicação, fez uma pausa para ver os pardais que estavam na grama do jardim de uma casa que fica na Praça da Liberdade.
– Gosto de ver os pássaros. Gosto da natureza. Um fio de cabelo da sua cabeça é você?
– Não.
– Mas faz parte de você…
– Sim.
– Assim é Deus. Deus é tudo. A natureza é parte de Deus. Por isso, temos que amar a Deus em todas as coisas. O que fazemos contra a natureza é uma agressão a uma das obras de Deus. A palavra “teoria” tem origem grega, pois é formada por “theós” mais “réomay”, que equivale a “Deus” mais “correr”, isto é, “correr para Deus”, ou correr para a descoberta da Verdade que está em Deus. Portanto, toda Teoria consiste no esforço de encontrar a Verdade.
E essa deve ser a nossa rotina: encontrar-se com a Verdade.