• 1ª parte da biografia de Silviano Santiago é exemplo de grande autor memorialista

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  • 22/02/2021 08:00
    Por Antonio Gonçalves Filho / Estadão

    Um dos principais autores brasileiros, Silviano Santiago começa suas memórias como se fosse uma terceira pessoa, elegendo um narrador neutro para falar de si mesmo. Torna-se, enfim, um personagem de ficção. Menino Sem Passado é o relato da infância do escritor mineiro, de 84 anos, que chega à plenitude com um projeto proustiano de publicar sete volumes sobre sua vida, marcada por experiências fortes e prêmios importantes – só para citar dois, o Machado de Assis pelo conjunto da obra, concedido pela Academia Brasileira de Letras em 2013, e o Oceanos de Literatura, em 2015.

    A infância de Santiago, povoada de gibis e cinema numa cidade mineira sem biblioteca (Formiga), é contada com liberdade e apreço pela precisão, o que faz de Menino Sem Passado um exercício comparável à obra memorialística de Pedro Nava. O autor concedeu uma entrevista ao Estadão em que fala de seu livro.

    Silviano, chama a atenção no livro a marca da ausência da figura materna no menino, que nos faz lembrar a forte relação de Proust com a mãe. Gostaria que você falasse um pouco sobre isso.

    Em minhas memórias, a mãe não representa ausência. Ao contrário, é presença excessiva, que foi esvaziada pelo acaso da morte prematura. É falta que ama. Daí vem sua aura silenciosa, a dominar a vida vivida do menino. E também seu valor extraordinário na vida escrita do adulto.

    Numa cidade do interior, os fatos mais fascinantes se passam sob o domínio do silêncio. Escutar o silêncio consentido. Escrever o tabu. As memórias pós-modernas (acredito) se abrirão para a escrita desse silêncio. Hoje, ele se escreve naturalmente. Por a mãe ser uma presença excessiva e esvaziada, ela ganha um sucedâneo em gibi e filme. Desperta o gosto pela leitura. Ganha também sucedâneos de carne e osso. São muitos e receberam nome na pia batismal. Sucedâneo é cópia, para falar como Platão. Nenhuma cópia será a figura original. Daí o lugar presente e silencioso da mãe nas memórias. Primeira cópia, Sofia d’Alessandro, a guardadora do menino. Segunda cópia, a irmã mais velha. Finalmente, o viúvo decide casar-se. Terceira cópia, a madrasta, figura humana também excessiva que ocupa toda a segunda parte das memórias. Os dois primeiros sucedâneos – a Sofia e a irmã – perdem também o lugar que ocupam e serão substituídas pela madrasta, até o momento em que dá à luz ao primeiro filho e se distingue da mãe de que é cópia. Pelas cópias, a arte de perder desvenda e preserva a presença silenciosa da mãe morta. A cópia final da mãe, a madrasta, passa a ser fator de enriquecimento emocional da criança. Os dois polos do livro – mãe morta prematuramente e madrasta – articulam a identidade imaginária (para citar Lacan) do menino sem passado.

    Gibis e cinema eram as diversões do menino introvertido, criado numa cidade sem biblioteca pública. Em que medida o cinema foi uma porta de entrada para a literatura?

    Órfão de mãe e mente curiosa, desde a infância eu me sentia à vontade entre o pop e o culto. Na passagem dos anos 1930 para os anos 1940, fui diferente dos meninos de mãe e pai presentes que só tinham acesso à leitura na escola primária. Entre o culto e o pop descubro retrospectivamente minha condição original de pós-moderno. Não cresci como leitor de escrita fonética, ou de livros, mas me fiz leitor semiológico, de signos e de linguagens diferentes. Hoje, a atividade de leitura não compartimenta signos e linguagens em gavetas separadas. Você lê tanto quadrinho quanto assiste, na televisão, a conferências acadêmicas e a telenovelas e séries. Hoje, se leem tanto signos fonéticos quanto imagens e ruídos. Cresci numa “caverna de signos”, para retomar uma expressão pós-moderna. Não é, pois, por casualidade que me tornei crítico de cinema antes de apreciar a Literatura. Meu primeiro mentor, Jacques do Prado, me disse que a leitura da imagem e do ruído não era suficiente para a boa formação intelectual. Aos quinze anos comecei a ler livros. No clube de cinema, onde o conheci, Jacques me deu como dever de casa a leitura de três autores: Fernando Pessoa, André Gide e Ezra Pound. Não os entendi bem na época. Confesso. Não poderia tê-los entendido. Mas me serviram de patamar da qualidade que eu deveria atingir, caso me dedicasse à escrita fonética, ao livro.

    Logo no começo do livro você diz que não é por inadvertência que o menino de Formiga se reconhece retrospectivamente na figura de Drummond. Além do gosto pelos quadrinhos que une o menino de Formiga e o de Itabira, não vejo muito em comum entre os dois.

    Tenho de me afirmar como pretensioso, ou ambicioso. Você tem toda a razão: não pertencemos à mesma geração. Isso não quer dizer que não o admire como referência literária. Aliás, minhas memórias pouco têm a ver com as memórias escritas pelos grandes modernistas. Venho bem depois, e com orgulho. Talvez seja o primeiro de minha geração a se ater apenas a determinada experiência (por exemplo, a ditadura militar de 1964). Adentro-me na vida pela infância. Insisto em outras diferenças. Não escrevo as memórias no estilo do Primeiro Caderno de Poesia do Aluno Oswald de Andrade, ou no estilo da coleção Boitempo, de Carlos Drummond. Eles se fazem estilística e mentalmente de crianças para falar da infância. Criam um estilo que chamo de “falso natural”. Fazem-se meninos para escrever como autênticos meninos. Meu livro se insere na desconstrução da linhagem patriarcal, de origem bíblica, como se sabe. Abandono a imagem da árvore genealógica para me representar e aos meus como se figura num vitral em cores na catedral de Chartres.

    A todo momento, você lembra que o menino é solitário e sonâmbulo, seja como morador em Formiga ou estudante em Paris. O que a solidão ensinou a esse menino?

    Não sei se a solidão “ensina”. Ela domestica o ser humano, na medida em que o leva a refletir sobre si, sobre a família e os relacionamentos humanos, sobre as comunidades que vai experimentando (e como mudei de cidade na minha vida!), sobre a atividade profissional e a sociedade em particular e como um todo, e assim por diante. A solidão talvez seja o caminho mais afim ao saber gratuito. Ela não ensina algo de prático, mas, se bem utilizada, é ferramenta produtora. Não há dúvida que a obra de arte é a grande beneficiária do saber gratuito da solidão.

    A guerra chega e tudo aquilo que o menino só via no cinema passa a acontecer ao lado, com descendentes de italianos e alemães sendo atacados pela população civil nas grandes cidades brasileiras. Como foi para uma criança lidar com esse choque de realidade?

    Como choque real, só vou experimentar a guerra em Paris, no anos de 1961. A França (os antigos aliados nossos na 2ª Grande Guerra) está em guerra contra as colônias africanas, em particular a Argélia, e a presencio às margens do Sena e até na Cidade Universitária. Capítulo da infância é o choque com o “real histórico”. Noções da história do Brasil me são dadas pelo conhecimento da família da madrasta, que vem de Santa Rita do Sapucaí (sul de Minas). Seu pai, Erasmo Cabral, foi grande produtor e exportador de café no porto de Santos e é levado à falência pelas casas comissárias e pelos bancos regionais. A falência em 1929 – outra forma terrível de perda, agora, de status socioeconômico – reforça a primeira parte sonâmbula da infância (e do livro) e lhe acrescenta as primeiras e concretas informações sobre o sistema de produção do ouro negro no Brasil. O que me era ensinado na escola primária como história do Brasil é duplamente questionado no livro. Em 1929, pelo crack da bolsa e a falência dos cafeicultores e exportadores. Em 1961, em caminhada para o futuro, pelo despertar do nosso passado colonial à vista da matança dos árabes em Paris.

    No capítulo ‘Fotos”, é de se esperar que Silviano Santiago evoque o exemplo do alemão W.G. Sebald. De fato, trata-se de um capítulo sebaldiano com referências a Barthes. A escrita autobiográfica está sempre associada a um álbum, como em Sebald e Barthes?

    Não busco dar às fotos um corpus, ou seja, um álbum de família. Procuro ver nelas “corpos” que se exibem e outros corpos que são escondidos. Ou seja, o menino sem passado, já adulto, continua leitor no sentido semiológico. Não é apenas leitor literário. É também leitor de imagens que não têm valor de troca até mesmo na literatura de sua preferência. Sou leitor de Sebald como sou leitor de Carlos Drummond. Serei ambicioso ou pretensioso? O capítulo se escreve como álbum “de” corpos. Se fosse álbum de família teria sido arrumado pelo Pai – com inicial maiúscula. O sentido de seu álbum é o de reafirmar sua marca em cada filho-homem (digo o óbvio: suas fotos negam lugar às mães e às irmãs – é o primogênito do primeiro casamento que dá à luz o primogênito do segundo casamento). A foto em cores é minha e o hífen do braço me liga a ela. O álbum é de uma nova família, aquela que se fragmenta no vitral de Chartres e está a desconstruir o patriarcado (mineiro). O olhar do menino sem passado está a buscar as matriarcas ausentes e as matriarcas futuras. Elas estão de corpo escondido pelo privilégio concedido aos meninos-homens, como em Drummond e Pedro Nava, para citar os mineiros.

    Na segunda parte do livro você fala de sua paixão por Chekhov, que descobriu nos palcos de Belo Horizonte. Por que sua obra teatral não foi adiante?

    Não me dou bem com as artes da representação, que são sempre coletivas. O teatro, o cinema e a música popular exigem o trabalho de muitos. Gosto de ser espectador, e a boa e genial amiga Bia Lessa sabe disso. Em termos de fabricação, opto pelas artes da solidão. Acho que sei escrever diálogos, e Stella Manhattan é bom exemplo, mas meu forte é a observação do ser humano. Gosto de fazer a descrição dos lugares e tenho prazer em desenhar perfis. As artes coletivas corroem por dentro o criador e o fazem perder a integridade pelo orçamento financeiro. Sou filho de dentista que teve de entrar no comércio de artigos dentários para sustentar a família numerosa. Sempre tive receio de investir fortunas em algo tão caro e tão frágil quanto uma peça de teatro ou filme. Neville D’Almeida me chamou para escrever o script de Rio Babilônia, agradeci e disse não sem pestanejar. Ezequiel Neves e João Carlos Rodrigues não titubearam. Depois, me falou em um filme sobre Antonin Artaud. Nem pensar.

    MENINO SEM PASSADO

    Autor: Silviano Santiago

    Editora: Companhia das Letras 464 páginas

    (R$ 89,90; e-book: R$ 39,90)

    As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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