• 1824: A Constituição que funcionou

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  • 30/mar 08:00
    Por Gastão Reis

    Neste ano de 2024, comemoramos o bicentenário da Constituição do Império do Brasil, aquela que o jurista e historiador Affonso Arinos de Mello Franco declarou ter sido a melhor que jamais tivemos. A seguir, faço um resumo sobre a qualidade jurídica da referida Carta.

    A primeira delas é o fato de ter sido fiel ao que manda a tradição do Direito Constitucional, que excluiu do texto questões de legislação ordinária, como ocorreu com a Carta de 1988, fato denunciado por juristas de peso. Esta qualidade explica ter sido a mais longeva de nossas constituições até hoje (65 anos). A de Portugal, de 1826, outorgada por D. Pedro IV (nosso D. Pedro I), baseada na nossa, atingiu 72 anos de vigência, também a que lá mais durou.        

    Ambas estiveram entre as primeiras constituições adotadas no mundo. Juristas ingleses reconheceram a qualidade de ambas. A questão da limitação do poder real absolutista foi enfrentada em ambos os textos. Cabe lembrar que a Câmara dos Deputados tinha, de fato, autonomia na definição do orçamento público, inclusive de autorizar ou não empréstimos pelo governo central do Império (Art.15, §13º). Era para valer. A dotação da Coroa Imperial ficou fixa em 800:000$000 ao longo do Segundo Reinado (1840-89), caindo de 5 para meio por cento do orçamento do Império. D. Pedro II jamais aceitou reajustes.

    Vejamos suas principais disposições.

    Logo no Art. 5º, garante a liberdade a todas as religiões, embora a católica fosse a oficial do Império, proibindo às demais ter aparência externa de templo. Havia quatro poderes: o legislativo, o moderador, o executivo e o judicial. No legislativo, era garantida a seus membros a inviolabilidade por suas opiniões no exercício de suas funções. O senado era vitalício, escolhidos seus membros numa lista tríplice. Quase sempre, o mais votado era nomeado pelo Imperador. O poder judiciário tinha amplas garantias, mas, caso um juiz emitisse sentenças sem base legal, podia ser suspenso pelo Imperador, sempre ouvido antes o Conselho de Estado, e colocado à disposição de um tribunal que o julgaria após amplo direito de defesa. Praticamente não havia decisões monocráticas do Imperador, como ocorre hoje no STF.

    O Poder Moderador é tratado no Art. 98 e seguintes. Nele é dito: “O poder moderador é a chave de toda a organização política, e é delegado privativamen-te ao Imperador, como chefe supremo da nação e seu primeiro representante para que incessantemente vele sobre a manutenção da independência, equilíbrio e harmonia dos demais poderes”. Nas “Instruções do marquês de Itanhaém aos preceptores de D. Pedro II”, em 12 artigos, fica cristalino o extremo cuidado e bom senso que presidiram a formação de D. Pedro II, e as virtudes da chefia de Estado hereditária. (Para lê-las, digite o título no Google.)

    São cinco suas características intrínsecas, típicas de um monarca constitucional. Ele não deve sua posição hereditária a partidos políticos aos quais teria que retribuir favores. O mesmo acontece com grupos econômicos por não necessitar apoio financeiro para ocupar seu cargo. Tem inerente visão de longo prazo para perpetuar a dinastia. Seus interesses pessoais praticamente se confundem com o público, pela mesma razão. Por fim, como corromper um monarca, oferecendo-lhe algo melhor do que ela já tem? Nenhum chefe de Estado eleito consegue satisfazer tais requisitos.

    O Art. 99 reza que a pessoa do Imperador é inviolável e sagrada: ele não está sujeito a responsabilidade alguma. Não é só ele. A tradição cristã do amor  ao próximo afirma que qualquer pessoa humana é sagrada e inviolável. Quanto à responsabilidade pelas questões de governo, cabe aos ministros. E não ao Im-perador, cuja função maior é fiscalizá-los para resguardar o interesse público. Dada a brutal desigualdade que nos aflige, a república não passou neste teste.

    Quanto aos militares, o artigo 147, com 18 palavras, era claro e objetivo: “A força militar é essencialmente obediente; jamais se poderá reunir sem que lhe seja ordenado pela autoridade legítima”.  Ou seja: a força militar está sob firme controle civil. Esta era a postura dos políticos do Império. Os civis controlavam com rigor os orçamentos militares, e normalmente eram os ministros do Exército e da Marinha. Não queriam ver aqui a presença militar na política, comum, desde o início do século XIX, nos nossos vizinhos de língua espanhola. Dispensa comentários o que se deu após o golpe militar de 1889. Na Carta de 1988, o art. 142, com 82 palavras, é dúbio, visto por alguns como porta aberta para golpes, segundo o renomado historiador José M.de Carvalho.

    O Art. 179 é enfático: “A inviolabilidade dos direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros, que têm por base a liberdade, a segurança individual e a propriedade, é garantida pela Constituição do Império”. O § 4º é cristalino: “Todos podem comunicar os seus pensamentos por palavras, escritos, e publicá-los pela imprensa, sem dependência de censura (…)”.  Durante o Primeiro e o Segundo Reinados, este dispositivo foi seguido à risca. Não foi o caso da dita república, após 1889, ao longo de sua existência de golpes, contragolpes e censuras.(Será que vão agora configurar crime de pensamento?)

    Neste mesmo Art. 179, o § 30º nos garante o seguinte: “Todo cidadão poderá apresentar, por escrito, ao poder legislativo e ao executivo, reclamações, queixas ou petições, e até expor qualquer infração da Constituição, requerendo perante a competente autoridade a efetiva responsabilidade dos infratores”. Além desta garantia, tinha a cobrança semanal nas reuniões do ministério das atividades e responsabilidades dos ministros pelo Imperador. Haviam ainda as audiências públicas de D. Pedro II, como fazia seu pai, aos sábados, para quem  quisesse falar com ele sem marcar audiência prévia.

    Em suma, era a prática rotineira de cobrança de responsabilidade das autoridades em geral. No Império, o Brasil passou com galhardia neste teste de respeito pelo povo e ao dinheiro público. Na república, não mesmo, até hoje.  

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