• No 13 de Maio, jovens artistas recontam a história da escravidão e da abolição

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  • 13/05/2017 11:00

     No dia 13 de maio de 1888 foi sancionada a Lei Áurea, que aboliu oficialmente a escravidão no Brasil. A lei, ao contrário do que resumem muitos livros de história, não é mérito exclusivo da princesa Isabel, mas resultado de um movimento liderado por abolicionistas e pelos então escravos, fugidos e libertos, e que envolve grandes nomes como o de Zumbi dos Palmares e sua companheira Dandara. A abolição se deu oficialmente naquela data, mas nenhuma estrutura foi oferecida aos recém-libertos, que se viram sem terras ou recursos. A herança deste momento histórico se perpetua até hoje: é entre a população negra que se verificam os maiores índices de pobreza e violência, além dos entraves para o acesso à educação.

    As condições em que vive a maior parte da população negra ao longo da vida afetam todo o processo de escolarização. Em 2015, apesar de o número de negros no ensino superior ter dobrado, influenciado por políticas de ações afirmativas, somente 12,8% dessa população chegou ao nível superior, enquanto entre os brancos o índice era de 26,5%. A dificuldade dos estudantes negros em ingressar em uma faculdade é reflexo também das altas taxas de evasão escolar ainda no ensino fundamental e dos índices de repetência ao longo da vida.

    Neste 13 de Maio, a Agência Brasil conversou com dois jovens artistas que abordam em suas obras a questão da escravidão: Jarid Arraes e Wallace Cardozo.

    Jarid tem 26 anos, é escritora, cordelista, autora do livro As Lendas de Dandara e de mais de 60 títulos em literatura de cordel. Nasceu em Juazeiro do Norte, na região do Cariri (CE). As Lendas de Dandara  mistura ficção e história para narrar dez contos sobre a guerreira quilombola Dandara dos Palmares, companheira de Zumbi dos Palmares. No novo livro, que será lançado em junho, Heroínas Negras Brasileiras em 15 Cordéis, Jarid conta mais histórias de líderes quilombolas e de batalhas no período da escravidão.

    Já Wall Cardozo, 19 anos, é MC do WWL RAP, grupo de Salvador. Em 2016, eles lançaram o EP Tinha que ser Preto e têm no repertório cançõees que tratam da temática racial. Além de Cardozo, integram o WWL RAP Lucas Santiago e Wesley Correia. O grupo surgiu em 2013, quando os três tiveram que fazer um trabalho da escola para apresentar no evento do Dia da Consciência Negra, comemorado em 20 de novembro. O rap agradou e os colegas pediram mais músicas: uma delas chama-se Ainda existe escravidão. O trabalho do grupo também está disponível em plataformas digitais como Spotfy e Youtube.

    Confira os principais trechos das entrevistas com Wall e Jadir:

    Agência Brasil: De que forma o tema da escravidão aparece em suas obras?

    Jarid Arraes: As Lendas de Dandara foi um livro que escrevi para desfazer mentiras que nos foram contadas a respeito da escravidão no Brasil. Digo isso porque me lembro muito bem de ter aprendido na escola que os negros eram mais passivos diante da escravidão, enquanto os índios se revoltavam e por isso acabaram sendo mortos. Só adulta descobri que os quilombos e revoltas foram muito além do quilombo de Palmares e de Zumbi. Com meu livro, quis mostrar um pouco do que essas pessoas faziam: desde a organização em quilombos, que eram praticamente países dentro do Brasil, até arrombamento de senzalas, incêndios em plantações que lucravam às custas da escravidão, roubos de navios negreiros para libertar quem vinha escravizado, entre tantos outros exemplos. No caso, escolhi trazer uma figura feminina para o protagonismo, pois existiram muitas, como Tereza de Benguela, e desfazer o prejuízo que já tivemos ao longo de nossas vidas. Minha intenção era contribuir com uma visão mais verdadeira e justa sobre como foi o processo de escravidão no Brasil, contar "o outro lado" que é ignorado e tantas vezes deliberadamente apagado da história.

    Wall Cardozo: Nós utilizamos a escravidão enquanto fator histórico negativo para mostrar o quanto o racismo, as desigualdades, a violência, tudo isso é reflexo desta enorme mancha na história do Brasil. Além disso, as lideranças e revoltas daquela época servem como inspiração para a nossa luta diária.

    Agência Brasil: Como acham que o período da escravidão tem sido retratado no Brasil e de que maneira a literatura e a música contribuem para outras abordagens?

    Jarid Arraes: Percebo que a escravidão no Brasil tem sido tratada como um fenômeno distante e quase mitológico; e isso faz com que as pessoas não enxerguem suas consequências vivas até hoje. Ainda existe escravidão no Brasil, precisamos acordar para isso. Parar e discutir com seriedade como as pessoas negras foram jogadas e exploradas no pós-abolição, em como a mentalidade racista e eugenista nunca foi realmente combatida, e por isso até hoje nossa cultura preserva valores e pensamentos racistas. A literatura pode mostrar tudo isso e trazer os leitores para o miolo da situação, criar um sentimento de empatia e compreensão em quem lê, que independentemente de sua cor de pele e de sua origem, pode entender o que significava ser escravo, quais eram as estratégias para lutar contra a escravidão, como era ser uma mulher negra no período pós-abolição. Enfim, quebrar um muro de racismo que separa as pessoas e que impede que se aprofundem em outras histórias, outras narrativas, sobretudo nas narrativas daqueles que foram oprimidos. Qualquer literatura é política, quer saiba disso ou não.

    Wall Cardozo: [A escravidão é abordada] apenas em datas específicas. O racismo só é tratado como um problema do tamanho que é no dia 20 de novembro [Dia da Consciência Negra] e a escravidão só é pauta no dia 13 de maio e em aulas de história, mas sem a ênfase negativa que merece, sem mostrar às crianças e aos adolescentes em formação que muitas condições e atitudes dos dias atuais são consequência de um passado sujo deste país. E é aí que entra o rap, o rap faz isso. Tentamos, nas músicas, expor o que passamos diariamente e deixar bem claro quem é o culpado de tudo isso.

    Agência Brasil: Para vocês, como essa questão deveria ser abordada?

    Jarid Arraes: Precisamos discutir a escravidão na escola de forma aprofundada e livre de racismo. Sobretudo, precisamos conhecer grandes lideranças negras, além de Zumbi dos Palmares, que lutaram contra a escravidão de muitas formas. No meu livro Heroínas Negras Brasileiras, que será lançado em junho, trago vários nomes de líderes quilombolas e de revoltas que marcaram nossa história, mas que ainda permanecem esquecidas. Não conheci nenhuma delas na escola ou na mídia, por outro lado, aprendi sobre os casos amorosos dos imperadores. Se todos os fatos históricos são importantes, por que ignoramos uma figura como Tereza de Benguela, que foi rainha de um quilombo com parlamento e tanto sucesso, que era basicamente uma nação cheia de diversidade étnica dentro do Brasil escravocrata? Começar daí seria muito bom.

    Wall Cardozo: Não adianta participar de campanhas pela causa apenas em datas "comemorativas" e, no dia seguinte, voltar a ter atitudes racistas. De nada adianta ensinar aos jovens que eles devem respeitar as pessoas no dia 13 de maio ou no 20 de novembro. Essa pauta deve ser diária, tem que ser matéria de jornais todos os dias, pois acontece todos os dias. Só haverá algum avanço nesse sentido quando nos conscientizarmos de pequenas atitudes que fortalecem todo esse sistema perverso e injusto.

    Agência Brasi: O que representa o dia 13 de Maio, quando oficializou-se a abolição da escravatura no Brasil?

    Jarid Arraes: Penso que o 13 de Maio oficializou algo que já vinha sendo construído e lutado por pessoas negras e por abolicionistas a duras penas, com muita coragem. E com certeza não foi o fim da exploração de pessoas negras, tampouco do racismo. Não foi um ato que veio acompanhado de qualquer medida para combater a perversidade da escravidão e o que ela gerou na sociedade. A data deveria ser uma oportunidade de reflexão e revisão profundas, no passado e no presente.

    Wall Cardozo: Representa uma conquista oriunda de muita luta, suor e sangue. O nome lembrado no dia de hoje não deve ser o da princesa [Isabel, que assinou a Lei Áurea], mas os de Dandara, Zumbi, Ganga Zumba. Pessoas que, de fato, lutavam e defendiam a causa. Matariam e morreriam defendendo o seu povo. O mérito é deles. A luta, até hoje, é nossa. Nós lutamos da forma que sabemos e tentamos atingir um número cada vez maior de pessoas. Quem são nossos heróis? Nós não endeusamos a princesa, mas é dela a imagem nos livros didáticos de história quando o capítulo é o do fim da escravidão. Não devemos nada a ela, ela não fez nada além da obrigação.

    Agência Brasil:  Qual é o lugar da literatura e do rap, tanto na sua vida, quanto em diversos aspectos e discussões no país?

    Jarid Arraes: A literatura foi e ainda é um privilégio de quem tem um perfil social muito delimitado. Nossas referências de escritores são, na maioria das vezes, figuras masculinas e brancas de meia-idade. Isso faz com que a escrita, a publicação e a possibilidade de ter leitores seja uma batalha para quem não se enquadra nesse perfil. E isso também se explica historicamente, pois as mulheres brancas tiveram acesso tardio à educação e ao direito de escrever e publicar o que escreviam. Imaginem só as mulheres negras! Temos aí um problema que tem história e consequências reais nos dias de hoje, mas, de novo, não estamos discutindo isso no mercado editorial, nas feiras e festas literárias, nas livrarias. Pelo contrário, só se convida autoras negras para certos eventos quando se faz um rebuliço enorme. É uma vergonha. Por isso que, para mim, a literatura é também uma forma de batalhar, de resistir, de desfazer mentiras históricas e contar as verdades que tentaram apagar.

    Wall Cardozo: O cenário atual é preocupante. Não há incentivo à arte, principalmente quando essa arte é o rap. Nós denunciamos falhas do sistema, então ele não tem interesse nenhum em nos favorecer. O acesso do jovem à universidade cada vez mais dificultado, cortes em bolsas e incentivos. A arte é libertadora, abre a mente e amplia visões. E por ser libertadora, é tratada como ameaça. 

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