• Epidemia de zika reacende debate sobre interrupção da gravidez

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  • 11/11/2016 17:32

    Especialistas, médicos e ativistas têm defendido a possibilidade de garantir à mulher o direito de interromper legalmente a gravidez enquanto perdurar a emergência da epidemia do vírus zika. O principal argumento é o sofrimento e o impacto emocional a que as mulheres são submetidas e a defesa de que o aborto é uma questão de saúde pública e bem-estar.

    “Eu penso que, dada a gravidade do problema e ele ser persistente durante a vida do bebê, é um direito da mulher decidir o que ela pode carregar sobre os ombros, isso é fundamental, é um direito humano, é um direito sexual e reprodutivo e é um respeito às mulheres, notadamente as de menor renda”, defende o especialista em medicina fetal, Thomas Gollop.

    A Professora da Faculdade de Medicina da Santa Casa de São Paulo, Tânia Lago, também chama a atenção para a gravidade da epidemia. “É importante que as mulheres, ao decidirem ficar grávidas, tenham claro os riscos aos quais elas estão sendo submetidas e seria muito importante que aquelas mulheres que engravidaram e que tenham zika pudessem ter acesso à opção de interromper a gravidez em função do risco de uma doença grave acometendo o feto, porque as consequências podem ser mais graves do que inicialmente pareciam”, alerta Tânia.

    Até o fim deste ano, o Supremo Tribunal Federal (STF) deve julgar uma ação direta de inconstitucionalidade (ADI 5581) que inclui o pedido de interrupção da gravidez como uma possibilidade excepcional para mulheres grávidas infectadas pelo vírus Zika e que estão sofrendo com a epidemia. O documento foi protocolado pela Associação Nacional de Defensores Públicos (Anadep) e destaca que, diante de uma situação de iminente perigo à saúde pública, há a necessidade da garantia de políticas públicas específicas para as mulheres e crianças atingidas pelo vírus Zika, como o acesso a medicamentos, transporte e benefícios sociais como o Benefício de Prestação Continuada e o Tratamento Fora de Domicílio.

    “A ADI tem grande repercussão e impacto, sobretudo pelos pleitos principais de implementação de políticas públicas de informações, diagnóstico e tratamento integral às mães e crianças atingidas. Como é de domínio público estamos diante de uma epidemia mundial que exige atuação estratégica e eficaz do Estado brasileiro”, destaca Joaquim Neto, presidente da Anadep.

    A ação também tem o apoio da Anis Instituto de Bioética, coordenado pela pesquisadora Débora Diniz, que acompanhou por dois meses a rotina das mulheres afetadas pela epidemia. “Essa ação não visa a legalização do aborto no país, porque nós estamos falando da epidemia, nós temos uma situação concreta que bate à porta. Nós estamos falando das mulheres durante a epidemia e é nelas que nós queremos pensar. Como proteger os direitos violados. É claro que, ao lançar a questão do aborto como parte de uma proteção, o debate do aborto volta pra cena nacional. E nós esperamos muito que ele [o debate] volte de uma maneira mais qualificada e reconheça o intenso sofrimento e risco [que as mulheres] tem ao se manter grávidas contra sua vontade”, argumenta Débora Diniz.

    Religião

    O contexto da epidemia e a pressão de ativistas, no entanto, não mudaram a posição de grupos religiosos sobre a possibilidade de legalizar a interrupção da gravidez. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) afirma que compreende a aflição das mulheres e defende que elas precisam ser amparadas, mas reforça que a epidemia não justifica a interrupção o direito de viver dos nascituros. “O posicionamento da CNBB continua o mesmo, que é o de defesa da vida. Nos chama a atenção a dificuldade de acolhimento dessas crianças. O que devemos fazer é chamar a sociedade para ser presente na vida dessas mulheres e crianças. Existe um descuido geral e temos que retomar essa questão da necessidade de combate ao mosquito. Não se fazem mais trabalhos junto às escolas e os meios de comunicação não falam mais do assunto. Mas o mosquito não transmite só o zika, então, todo o cuidado é pouco”, alerta Dom Leonardo Steiner, secretário-geral da CNBB.

    Tanto a CNBB quanto a Anadep devem continuar o debate sobre o aborto depois do julgamento da ação no STF. “Acreditamos que há pontos que podem exigir uma ampliação do debate, a exemplo de audiências públicas nos termos que a própria lei dispõe e, portanto, virem a ser apreciados posteriormente ao julgamento da medida cautelar”, afirma Joaquim Neto, presidente da Anadep. “Já dialogamos com a Anadep. Há elementos importantes que concordamos na ação. E vamos continuar buscando o diálogo para mostrar a importância da vida e do cuidado com o ser humano”, reforça Dom Leonardo.

    Aborto inseguro

    O Instituto Anis liderou uma pesquisa nacional sobre o aborto e constatou que a interrupção da gravidez já é uma prática entre as mulheres brasileiras. “Nós encontramos que uma em cada cinco mulheres aos 40 anos já fez pelo menos um aborto na vida. Isso significa que o aborto é um evento comum, de mulheres comuns. Ele é um evento reprodutivo que faz parte da vida das mulheres. Ao mesmo tempo que nós criminalizamos o aborto e o descrevemos como um tabu, nós estamos falando de mulheres muito próximas a nós. Todas nós conhecemos cinco mulheres e uma em cada cinco já fez um aborto”, afirma a pesquisadora Débora Diniz.

    O medo do futuro e a incerteza dos fatos relacionados à Síndrome Congênita do Zika têm levado muitas mulheres ao aborto clandestino e inseguro. Desde a emergência da epidemia, profissionais de saúde perceberam um aumento no número de cirurgias de curetagem, procedimento que retira os restos de um aborto realizado de forma insegura ou clandestina.

    A enfermeira Quéssia Rodrigues trabalha em um dos maiores hospitais públicos de Salvador e observou a diferença na demanda de cirurgias desde o início da epidemia. “Eu tenho me assustado com o número de abortamentos que tem acontecido na unidade. A gente percebe que tá relacionado à questão dela ter tido zika. A gente presencia abortamentos espontâneos, mas a gente tem tido muito abortamento provocado. Às vezes, a gente questiona ela e percebe o medo que ela tem de desenvolver uma criança com microcefalia,” relata Quéssia.

    Líderes comunitárias também relatam a ocorrência de abortamentos depois da epidemia. “Tivemos muitos casos de aborto aqui e o que nos traz mais indignação é que as mulheres realizam aborto de uma maneira muito insegura. O maior índice de morte materna na nossa capital, em Salvador, é por conta do aborto", conta a líder do coletivo de mulheres do Calafate, em Salvador, Marta Leiro. Ela ressalta que quem tem maior poder aquisitivo fica menos exposto a riscos: "Quem tem dinheiro faz em clínicas e tem todo um acompanhamento ou então vai pra um país onde [o aborto] é legalizado e fica de boa, sem sentimento de culpa”.

    Um estudo da Revista Científica The New England Journal of Medicine mostra que, desde que Organização Mundial de Saúde decretou a epidemia do zika como emergência internacional, houve aumento de pedidos de aborto por mulheres latino-americanas a um grupo internacional que fornece pílulas abortivas e orienta mulheres de países onde a interrupção da gravidez é proibida.

    No Brasil, a comercialização de pílulas abortivas, como o Mifepristone e o Misoprostol, também conhecido como Cytotec, é considerada crime desde 2005. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária, Anvisa, fiscaliza e apreende os medicamentos vendidos de forma irregular. Do final de 2005 até o momento, a Anvisa determinou a suspensão de 75 páginas de Internet que divulgavam ou comercializavam o Cytotec. Outros 45 sites ainda estão sob a análise da Agência.

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