• Djamila e racismo: acertos e equívocos

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  • 20/09/2020 00:01

     

    Acabei de ler o livro de Djamila Ribeiro, “Pequeno Manual Antirracista”, publi-cado em 2019, pela Companhia das Letras. O livro é bem escrito e desenvolve boa argumentação sobre o tema, dando margem ao debate inteligente. A autora, filósofa, nos cobra uma atitude proativa nessa longa luta contra o racismo. Os capítulos nos convidam a seguir nesta direção com títulos do tipo: Informe-se sobre o racismo; Enxergue a negritude; Reconheça os privilégios da branquitude; Perceba o racismo internalizado em você; Apoie políticas educacionais afirmativas; Transforme seu ambiente de trabalho; Leia autores negros dentre outros, induzindo-nos a questionar a cultura que consumimos.

    As colocações da autora nos apontam o peso da cultura branca no processo de destruição da autoestima do negro. Ela me fez lembrar de um filme, visto há muitos anos, em que um psicólogo negro realizava um teste na década de 1950 com estudantes negros de uma escola primária americana. Ele simplesmente lhes oferecia duas bonecas, uma negra e outra branca (e loura), e queria saber qual delas eles preferiam. Foi sintomático o fato de praticamente todas as crianças negras preferirem a boneca loura. Ele queria justamente provar o efeito corrosivo sobre a autoestima da população negra americana, que se manifestava desde cedo nas crianças e jovens em ser o que não eram.

    Meus comentários a seguir vão oscilar entre pontos de concordância e discordância, apontado inclusive algumas lacunas e imprecisões estatísticas.

    O livro vem vendendo bem, e é positivo que assim seja. Logo no início, ela cita a constituição imperial de 1824 que determinava que a educação era um direito de todos os cidadãos. No entanto, de fato, era vetada às pessoas negras escravizadas. Ela observa que tais direitos eram condicionados à posse e rendimentos para dificultar aos libertos o acesso à educação. Mas ela não se reporta ao que foi dito pelo historiador Sergio Buarque de Hollanda sobre o valor exigido ser na época irrisório. E não menciona o fato de cerca de 50% da grande população negra do Rio de Janeiro ser livre por volta de 1850, tendo assim permitido o acesso deles, em alguma medida, à educação pública.

    O livro bate na tecla da importância de reconhecermos o caráter estrutural do racismo brasileiro. Tenho minhas reservas. Para tal, o racismo americano mereceria o qualificativo de visceral. Ainda me lembro de um pesquisador americano que definia o deles como absoluto, em que a cor da pele excluía a convivência entre brancos e negros, e o nosso como relativo, em que libertos bem sucedidos financeiramente, já nos tempos coloniais, eram aceitos na sociedade branca. Nos EUA, não. O negro Jesse Owens, ganhador de quatro medalhas de ouro nas Olimpíadas de Berlim, em 1936, em jantar na Casa Branca em sua homenagem, teve que entrar pela porta dos fundos.

    Ela reconhece o mérito de Gilberto Freire, em “Casa Grande e Senzala”, por combater o racismo com ares de ciência que via no negro inferioridade natural face ao branco. Por outro lado, nos fala da necessidade de leitura crítica do famoso autor, no elogio à miscigenação que teria perpetuado entre nós o mito da democracia racial. Seria só mito? Ela omite o fato de visitantes americanos e europeus estranharem a presença de mulatos e negros em postos importantes na administração do Império, no Rio de Janeiro. Machado de Assis era um deles. Cem anos antes de Obama assumir a presidência dos EUA, o Brasil já teve um mulato, o barão de Cotegipe, como Primeiro-Ministro (1885-1888). Obama, em vídeo, afirma que não é branco nem preto, mas mulato. Negar sua metade branca seria jogar fora o legado de sua mãe e avós brancos que lhe deram uma boa educação. Com o pai, que morreu cedo, teve pouco contato.

    Ela defende, com razão, o imperativo de não tratar pessoas negras com condescendência. Cita o exemplo de ter sido elogiada pelo simples fato de ter redigido bem um texto de resposta a um e-mail. Na Universidade da Filadélfia, tomei a decisão de tratar negros de igual para igual. E funcionou, a despeito dos alertas em relação a eles dos próprios americanos na época (1977-1980).

    A autora bate na tecla, repetida por muitos, de que cerca de 56% da população brasileira é negra. Afirmação não-confirmada pelos dados do censo de 2010 do IBGE. Os números são os seguintes: brancos (47,51%); pardos (43,42%); negros (7,52%); amarelos (1,1%); e indígenas (0,42%). As pessoas pardas, pelo que nos informa o IBGE, não se reconhecem como negras. Reação idêntica ao do Obama ao se definir como mulato. E têm todo o direito de reconhecer a contribuição de outras etnias em sua composição física. O que de fato vem crescendo no Brasil é o grupo dos pardos uma boa notícia para quem celebra, como eu, a miscigenação e a diversidade.

    Djamila Ribeiro comemora os bons resultados da política de cotas. A Universidade do Estado do Rio de Janeiro foi a primeira a adotar o sistema em 2003. Contrariamente ao que diziam os críticos, o desempenho positivo dos cotistas trouxe avanços significativos para o saber do país, além de mais inclusão social. É fato que, no futuro, uma escola pública de qualidade terá condições de superar o problema, tornando as cotas desnecessárias como vem ocorrendo nos EUA. Na verdade, o drama não é só dos negros, mas de toda a população pobre (e parda) que sofre os efeitos de um ensino de má qualidade.

    A maior falha do livro foi não expor a mudança qualitativa para muito pior da população de origem africana na passagem da monarquia para a república, como anteviu o engenheiro negro André Rebouças. Não menciona o escritor e jornalista negro Tom Farias, que afirma que o século de ouro do negro no Brasil foi o XIX, único período bem sucedido de combate à desi-gualdade por décadas. A república nasceu racista com um discurso eugenista de melhoria da raça. Seus protagonistas não acreditavam em seu próprio povo.

    Parece inclusive desconhecer a proposta do último gabinete do Império, incentivada pela Princesa Isabel, para assentar os negros libertos ao longo da grande malha ferroviária de que o país já dispunha na época, de modo a lhes dar trabalho, terra e renda. Sem dúvida, uma iniciativa que teria mudado da água para o vinho a situação do negro brasileiro hoje. Recomendo a leitura.

     

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