• Decisão esdrúxula e inconstitucional

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  • 06/09/2016 10:25

    Diz a Constituição que a perda do cargo de presidente da República será imposta “com inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública, sem prejuízo das demais sanções cabíveis”. Numa leitura do dispositivo da Carta Magna, com a preposição ‘com’, tem-se a ideia de reunião, de junção, de companhia e de relação simultânea. Portanto, não há como dissociar-se uma pena de outra, uma vez interligadas, restando evidente que a segunda decorre da primeira.

    No entanto, mesmo diante de meridiana obviedade, tomou-se decisão adversa a qualquer interpretação primária do mandamento constitucional. Tivemos no Senado um acordo espúrio entre os defensores de Dilma Rousseff e parcela do PMDB. Concretizaram o que antes já fora pactuado com Renan Calheiros e Ricardo Lewandowski.

    Em relação a Renan, nenhuma novidade. Trata-se do que há de pior na política brasileira. Como ele, quem o acompanhou tem o rabo preso, muito bem exposto ou em vias de ser exposto pela Lava Jato, como resultado das mais recentes investigações ou em delações premiadas correntes naquela operação.

    Mas o que mais incomoda e agride é o cinismo absoluto. Não tiveram o menor pudor em advogar uma visão absurda e insustentável sobre o teor da norma constitucional punitiva, votando-a em dois momentos e de forma separada. Como supostas penas autônomas e distintas, promoveram a decomposição do indissolúvel. Agiram como se fosse possível aplicar a pena de cassação do mandato, sem a inabilitação para o exercício de função pública, ou vice-versa, a inabilitação sem a cassação, como haveria de concluir qualquer iniciante no universo das letras jurídicas. Bem, mas o fizeram, aqui sim, com expressão que permeou o pronunciamento final de Lindberg Farias. Mandaram os escrúpulos às favas, contanto que a decisão pudesse premiar a presidente infratora e outros prováveis beneficiados pela medida inconstitucional. Noticia-se que o presidente do Supremo, Ricardo Lewandowski, participou do acórdão e que teria orientado o discurso melífluo da senadora Kátia Abreu. Pelo amor de Deus, aonde chegamos, com ações que esbofeteiam a cidadania, com atos perpetrados sob os holofotes e flashes das câmeras de várias cadeias de televisão brasileiras e internacionais, enchendo de opróbrio a nacionalidade.

    A questão judicializou-se. Não apenas com o recurso já interposto pela ex-presidente, mas com tantos outros, que também se insurgem contra o ‘decisum’ que garantiu a Dilma Rousseff o exercício pleno de toda e qualquer função pública, eletiva ou não. E o acórdão a ser proferido pelo Supremo poderá agasalhar entendimentos diversos, como em toda e qualquer decisão judicial colegiada. Não haverá como descartar a anulação total do ato do Senado, mandando-se que se faça nova e única votação, sem divisão, ou determinando-se a anulação da segunda, referente à inabilitação, porquanto decorrente da primeira. Na primeira hipótese, teremos a reiteração do processo, com Michel Temer retornando à condição de interino e com todas as incertezas e instabilidades daí resultantes. Na segunda, a mais desejável, poderemos encerrar mais um episódio traumático na história do presidencialismo brasileiro.

    Em qualquer situação, urge que o Supremo Tribunal Federal se pronuncie sem mais delongas, varrendo de vez o clima de abalos institucionais que obstaculizam o reingresso do país numa nova quadra de estabilidade econômica e segurança jurídica, com vistas ao reencontro do Brasil com os caminhos do desenvolvimento econômico e social.

    paulofigueiredo@uol.com.br

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