• Confiança = desconfiança do poder

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  • 19/07/2020 00:01

    Recentemente, lendo o livro O Negociador, de Frederick Forsyth, publicado em 1989, deparei-me com um parágrafo que reproduzo: “Pessoas bem informadas em Washington costumavam confidenciar a amigos britânicos que dariam seu braço direito para ter um sistema de governo igual ao deles”. A grande virtude seria a continuidade dos gabinetes que se sucedem mesmo quando são de oposição. O segredo é muito simples: existe por trás dos governos que vêm e vão uma burocracia profissional, cuja experiência e know-how permanecem. Além disso, no caso americano, os presidentes eleitos chegam à Casa Branca “frios”, apenas com experiência de seu estado; já os primeiros-ministros ingleses chegam ao poder sempre com experiência em nível nacional. Sem dúvida, situação decorrente do fato de a Inglaterra ser um estado unitário.

    Não há como deixar de mencionar a semelhança com o Brasil do século XIX, quando éramos um estado unitário. Os líderes dos partidos políticos que se revezavam no poder, o Liberal e o Conservador, se conheciam e estavam sempre sob a batuta vigilante de Pedro II e da Princesa Isabel nas regências que, somadas, equivaleriam a um mandato presidencial. Melhor ainda, esses partidos tinham visões políticas próprias e coerentes, como nos asseguram os historiadores José Murilo de Carvalho e William Summerhill. Não eram fari-nha do mesmo saco. Além do mais, seus líderes só galgavam posições de relevo nacional após terem tido experiência na gestão de mais de uma província. 

    Vejamos agora o caso da confiança e da desconfiança nos governos na tradição inglesa. De um modo geral, elogiamos muito o fato de a confiança ser o pilar básico do relacionamento entre representantes e representados na Inglaterra. Mas o real mecanismo por trás é a desconfiança secular que os in-gleses têm do poder, segundo Alan Ryan. O simples fato de o Primeiro-Ministro ir semanalmente ao Parlamento para prestar contas de seus atos de governo, e ainda ter audiência às sextas-feiras com a rainha (ou rei) demonstram como os gabinetes ingleses funcionam sob rédeas curtas. Eles acreditam piamente, e com razão, na máxima de Lord Acton: “Poder corrompe e poder absoluto corrompe absolutamente.” Basta nos lembrarmos de Stálin e Hitler. 

    Quando nos reportamos às práticas políticas do Patropi republicano, nos damos conta de quão longe estamos dessa saudável tradição de tratar governos com desconfiança, obrigando-os a prestarem contas semanais de seus atos para gozar de nossa confiança como povo. O estranho é termos perdido essa capacidade desde 1889. Justamente por termos na pessoa do monarca, toda semana, um fiscal exigente do que os políticos estavam aprontando. Sim, eles aprontam, até mesmo nas crises humanitárias como a do coronavírus. Encontrar 8,5 milhões de reais em dinheiro vivo na casa do ex-secretário de saúde fluminense, dentre outros, é a prova cabal do crime.  

     Ao longo de nossa história republicana, montou-se um faz-de-conta pernicioso de progressivo descolamento entre os anseios dos eleitores e aqueles que deveriam representá-los condignamente. E foi assim que o país passou a ser um feudo dos políticos, cuja preocupação maior era o próprio umbigo. A tragédia suprema foi o descaso com a educação em dois sentidos, ambos maléficos. O primeiro foi não dar atenção, em 130 anos, à qualidade da educação básica. O segundo foi despejar rios de dinheiro em educação superior. Os países bem sucedidos gastam, ainda hoje, em termos per capita, mais com educação básica do que com a superior. Nós fazemos o oposto!

    O estudo “Consequências da Violação do Direito à Educação”, da lavra dos economistas de Ricardo Paes de Barros e Laura Machado, me traz à memória outra pesquisa, a de aleitamento subsidiado para crianças até os dois anos no Peru do início dos anos 1970. E de vários outros surgidos depois. Eles compro-vavam o dano irremediável da capacidade cognitiva da criança por não ter acesso ao leite em quantidades adequadas até os 2 anos de idade. Subsidiar o leite, um custo irrisório, livraria o Peru de ter um incapaz no futuro. No caso brasileiro, o fato de um aluno não completar os 11 anos de educação básica o leva a um futuro sombrio: empregos de baixa remuneração, pior qualidade de vida, longevidade curta. Trágico para o jovem e caríssimo para o país, que arca com o custo quatro(!) vezes maior que o de lhe fornecer uma boa educação.

    A triste diferença entre o Brasil e a Inglaterra é que não temos aqui os instrumentos indispensáveis à correção de rumos que se faz necessária. Nossa justificada desconfiança morre na praia. E faz do eleitor brasileiro um incapaz político. A desilusão com a política segue em direção à perigosa acomodação do “foi sempre assim”. O que preocupa é o fatalismo que contamina inclusive pessoas de escolaridade elevada, até mesmo com formação superior. O voto distrital puro e a revogação de mandatos, de um modo geral, são ilustres desconhecidos da população. Na Inglaterra e nos países de língua inglesa, os distritos eleitorais funcionam há séculos, locais onde os parlamentares vão bater ponto todo mês. É a hora do torniquete a que eles estão habituados.

    Pode parecer paradoxal, mas o mecanismo que garante a confiança nas lideranças políticas é a desconfiança em relação ao poder que levam o eleitor a monitorar permanentemente os políticos. A longa tradição presidencialista republicana brasileira despiu o eleitor dos instrumentos efetivos de controle daqueles que exercem o poder. Aparecem a cada quatro anos, prometem mundos e fundos, e desaparecem até a próxima eleição. Ou bem caminhamos em direção ao parlamentarismo e respectivos instrumentos de controle dos políticos, ou vamos continuar apenas reclamando. Não basta desconfiar. Para poder confiar nos governantes, precisamos saber o que andam fazendo pelo menos uma vez por mês. Isso dá trabalho, mas compensa.                                       

     

       

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