• Comissão da Verdade encontra documentos que comprovam torturas em Petrópolis

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  • 06/11/2016 07:00

    Mais de 20 mil documentos analisados: ofícios, prontuários, documentação de fluxo e de censura oficial. Mais de 20 depoimentos coletados, em 306 dias de atuação. A Comissão Municipal da Verdade de Petrópolis (CMV) completa um ano desde que foi oficialmente instaurada na cidade, em 11 de dezembro de 2015. O grupo, inicialmente composto por seis pessoas, conta hoje com mais 8 voluntários e já apresenta avanços da pesquisa sobre os crimes ocorridos na cidade entre 1964 e 1985, período em que o país viveu sob um regime militar. Para Eduardo Stotz, presidente da CMV, uma das conquistas é a identificação de provas documentais que vão permitir a reparação simbólica e judicial dos familiares dos presos perseguidos pela ditadura. Esses arquivos foram encontrados nos documentos da 67ª Delegacia de Polícia, no Museu Imperial; no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ) e na Biblioteca Municipal. 

    A comissão encontrou também provas de, pelo menos 200 prisões de pessoas que pertenciam a classe trabalhadora, no período de 1964 a 1967, ou seja durante os governos de Castelo Branco e Arthur da Costa e Silva. Os presos eram, na maioria, sindicalistas. Mas também foram encontrados grande número de militares, bombeiros, servidores públicos e professores da Universidade Católica de Petrópolis (UCP). Embora o trabalho de pesquisa continue até o fim do ano, a comissão concluiu que, com base na documentação analisada é possível confirmar que o golpe militar de 1964 foi contra a classe trabalhadora e que esse dado amplia o número de pessoas que foram diretamente atingidas pela repressão. Ou seja, acrescenta esses 200 nomes aos 7.367 levados aos bancos dos réus pelo regime, registrado pelo relatório Brasil: Nunca mais. 

    O grupo da CMV comemora ainda o fato de que a Câmara Municipal reconheceu em abril de 2016 que a cassação dos direitos políticos do candidato do Partido Socialista Brasileiro (PSB) José de Araújo Aranha, em 1964, foi um ato antidemocrático. Outro fato que é motivo de satisfação para a comissão foi ter encontrado na 67ª Delegacia os documentos que comprovam a prisão de Fabrício de Alves Quadros, que era do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Fabrício e toda a sua família foram perseguidos antes e durante os 20 anos de regime. 

    Além da pesquisa documental, a CMV tem colhido também depoimentos com pessoas que foram atingidas pela repressão na cidade. Entre os relatos, Rafane Paixão, membro da comissão, cita um petropolitano que contou ter sido vítima de torturas psicológicas, ameaças e teve a casa invadida diversas vezes pela Polícia. Para o presidente da CMV, Eduardo Stotz, a ditadura legitimou a tortura como um método e, em alguns casos, utilizou a eliminação de pessoas e o desaparecimento dos corpos. “No mundo todo, Petrópolis se tornou conhecida pela Casa da Morte, que era um centro secreto e clandestino de torturas e assassinatos, mas é importante destacar que a repressão aqui foi aberta e atingiu os petropolitanos”, comentou. Como exemplo, contou que foram encontrados registros da polícia de 1968 pedindo uma relação de todos os apartamentos da cidade, com os respectivos nomes dos donos. A mesma informação foi pedida para as faculdades, com a lista dos nomes dos alunos.

    Sobre a importância da pesquisa 31 anos após o término do regime, ele ressalta: “Nosso papel é fazer com as pessoas saibam o que a ditadura silenciou por anos. O que houve foi um soterramento do conhecimento sobre esse período. Foi uma pedra colocada sobre o medo. A missão da comissão é lutar contra esse medo e o silêncio”. Ele disse ainda que há depoimentos de pessoas que até hoje vivem com receio. Uma das testemunhas ouvidas disse que até para ir à padaria carrega a carteira de trabalho, porque naquela época, quem não tinha documento, era preso. 

    Atividades realizadas pela Comissão da Verdade em 2016

    Desde que o grupo assumiu a CMV, teve início o trabalho de pesquisa, que envolveu além da análise documental, a leitura de inúmeros livros sobre a ditadura militar. Muitos deles mencionam Petrópolis, como é o caso do título “Os porões da contravenção”, dos autores Aloy Jupiara e Chico Otavio. Além disso, a comissão instituiu junto ao poder público, a Semana da Memória, Verdade e Justiça, que passou a integrar o calendário municipal de eventos. Em 2016, foram realizadas diversas atividades no mês de abril. A semana teve início no dia 1º, data que marca o início do regime militar, mas contou com uma vigília até a Casa da Morte, no Caxambu, no dia 31 de março.

    Também ocorreu um Ato Ecumênico no Palácio de Cristal, em memória pelos atingidos pela ditadura. Na ocasião, o bispo Dom Gregório Paixão leu uma carta em que destacou a importância da comissão para a cidade. “Moro a 400 m da Casa da Morte de Petrópolis. Silenciosa, ela nos fala das torturas ali empreendidas. É a casa de Anne Frank brasileira. É um sinal visível de que não podemos nos calar à tragédia do passado, pelo desejo de vermos sedimentada a democracia brasileira, ainda tão jovem e tão frágil”, disse o bispo.

    A exposição itinerante Petrópolis: Ditadura e Resistência, que fez parte da Semana da Memória, também rendeu bons resultados. Inicialmente, foi aberta ao público no Centro de Cultura Raul de Leoni, mas ao longo do ano passou pelos centros culturais de Cascatinha, Posse, Nogueira e, por último, pelo Palácio Itaboraí. Ao todo, atraiu mais de mil visitantes, sendo que a maioria de escolas municipais, apesar de ter tido uma presença significativa de alunos da rede privada. “Com a exposição, conseguimos levar muitas informações para os estudantes e essa era uma das metas da comissão para 2016”, disse Roberto Schiffler, também membro da CMV. 

    O encerramento no Palácio Itaboraí contou com a presença de 20 pessoas em situação de rua, levadas pelo Centro de Defesa dos Direitos Humanos (CDDH). Na ocasião, houve um debate sobre a questão da tortura, que essas pessoas afirmam que ocorre até nos dias atuais, lembrando inclusive um fato que ocorreu em 2004 e resultou na morte do Escadinha, nome dado a um morador de rua na época. 

    De acordo com Eduardo, o trabalho de coleta de dados deve ter fim até o mês de dezembro. A partir de 2017, a comissão se debruça em um trabalho considerado ainda mais difícil e demorado que é classificar, analisar, produzir e divulgar as informações encontradas durante este ano. Paralelamente, o grupo já está pensando na realização de uma audiência pública para divulgação dos resultados parciais e as ações que deverão acontecer durante a segunda edição da Semana da Memória, Verdade e Justiça, em abril de 2017.


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