• Cidadania sem direitos: precariedade compromete o empenho de equipes assistenciais a moradores de rua

  • Continua após o anúncio
  • Continua após o anúncio
  • 19/08/2019 16:55

    Todo dia um recomeço

    Aos 31 anos, Diego* é uma das cerca de 130 pessoas que são assistidas mensalmente pelo Centro de Referência Especializado para População de Rua (Centro Pop), no município. Como a maior parcela das pessoas em situação de rua, saiu de casa devido a uma ruptura familiar. Os desentendimentos constantes fizeram com que começasse a frequentar as ruas aos 14 anos. Ele conta que a válvula de escape que encontrava para fugir das brigas era se refugiar em botequins. Aos 19 anos, começou a usar drogas e um ano depois já estava envolvido com o tráfico. “Traficava para sustentar o vício, manter as roupas, ostentar e ter luxo”. Do vício das drogas ele pulou para as máquinas caça-níqueis. “Tudo que ganhava com a droga não conseguia manter, gastava tudo com as máquinas”.

    (*o nome do usuário foi substituído para preservar sua identidade)

    Nesta trajetória, Diego se mudou de Petrópolis e tentou uma nova vida em outro município. “Não conseguia trabalho e o dinheiro foi acabando, não estava feliz”. O que fez com que ele retornasse para a cidade. Sem conseguir se reestruturar sozinho, acabou indo dormir nas ruas. A família de Diego mora na cidade, sua ex-companheira e seu filho de 3 anos, também. Mas retomar a vida que tinha antes é um caminho difícil, que ele tenta dia após dia recomeçar. Atualmente, ele é assistido pelo Centro Pop durante o dia e, a noite, dorme no Núcleo de Integração Social (NIS). Sem trabalho formal, Diego faz alguns bicos como ambulante vendendo picolé nas ruas do Centro ou vendendo os artesanatos que ele mesmo produz. 

    “Meu sonho é ser uma pessoa melhor, porque a gente tem que ser bom para a gente. Sendo bom para a gente, acerta tudo. Meu filho vai estar bem, minha família também vai estar bem, e as coisas vão acontecendo naturalmente, sabe”, desabafou.

    Um dos maiores desafios que os agentes da assistência social enfrentam é o de ampliar a percepção dessas pessoas para que se reconheçam como sujeitos de direitos e se abram a novos projetos de vida que os levem a saída das ruas. No Centro Pop, são apenas 18 funcionários entre educadores, assistentes sociais e psicólogos que atendem a população de rua. 

    Os atendimentos são feitos de forma espontânea ou por meio da busca ativa, quando a equipe de abordagem vai até o local buscar o usuário. “O equipamento da assistência vem para trabalhar em conjunto com todos os outros órgãos, uma vez que a assistência não é uma política isolada, e sozinha não vai dar conta de todas as mazelas dessas pessoas”, explica a coordenadora do Centro Pop, Telma de Oliveira. 

    Além do atendimento técnico, são desenvolvidas oficinas reflexivas com psicólogos, para trabalhar a questão da autoestima e a motivação, oficinas de sensibilização profissional, confecção de currículo, encaminhamento para cursos e inclusão no balcão de empregos do Município e outros sites, como explica a coordenadora. Segundo a Prefeitura, durante o dia também são oferecidas aulas de capoeira, teatro, roda de conversa, oficina reflexiva, atividade pedagógica, reuniões com equipe multidisciplinar, futebol e sessões de cinema. 

    “É um trabalho constante de pensar estratégias de cuidados dentro da realidade deles. Suas prioridades, adaptadas as suas características e necessidades”, resume a coordenadora. O trabalho da assistência social segue as diretrizes da Política Nacional de Assistência Social – PNAS/2004, por meio do Sistema Único de Assistência Social – SUAS. 

    Além do atendimento psicossocial, no Centro Pop, os usuários recebem auxílio para fazer a segunda via ou emissão de documentos e são inseridos no CadÚnico. De janeiro a junho deste ano, o Centro Pop registrou 44 usuários no CadÚnico. Por meio desse cadastro, os usuários que tem direito, podem ser incluídos em programas sociais do Governo Federal como Bolsa Família e Benefício de Prestação Continuada (BPC).

    Confiança construída pelo cuidado

    Todos os usuários atendidos pelo Centro Pop são encaminhados para o Consultório na Rua, que além de atender as demandas imediatas de saúde, faz o acompanhamento clínico e ações preventivas. A equipe é formada por um médico, uma enfermeira, uma técnica de enfermagem, agente social e assistente social, além de ter parceria com outros serviços, como odontologia e psicologia. 

    A coordenadora do Consultório na Rua e assistente social Márcia Medrado, explica que o trabalho é feito sob a lógica da redução de danos, sempre trabalhando dentro da contextualização dos usuários. “A população de rua tem escolaridade muito baixa, quase todos tem vínculos familiares interrompidos ou transtornos mentais e a maior parte enfrenta a dependência química”. Pensar estratégias que alcancem essas pessoas dentro das suas particularidades e prioridades é um desafio também para os agentes dos equipamentos públicos. 

    O receio pela discriminação faz com que a maior parte da população de rua não busque atendimento médico nos equipamentos públicos de saúde. E o Consultório na Rua instituído pela Política Nacional de Atenção Básica (Portaria nº 2.488/11), tem a proposta de ampliar o acesso desses usuários à rede de atenção básica de saúde, indo de forma itinerante ao encontro da população em situação de rua. 

    As visitas da equipe estreitam laços e criam vínculos de confiança. “Essa relação tem que ser uma relação muito leve e de muita confiança. Porque se não eles só não contam, como também não chegam até nós. Normalmente, eles dizem que nós somos a família que eles não têm, porque nós vamos onde eles estão. O atendimento não é feito nos consultórios”. Márcia explica que o serviço não se resume apenas ao atendimento médico. “É a longitudinalidade do cuidado, a gente cuida onde quer que ele esteja, estabelecendo esse vínculo”. 

    No município, o Consultório na Rua foi implantado em 2015. E atua em parceria com outros equipamentos da Prefeitura para o encaminhamento e atendimento da população de rua. Os usuários que são identificados com Transtorno Mental Grave, segundo a Prefeitura, são referenciados ao Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) Nise da Silveira. E quando são identificados transtornos pelo uso de álcool e outras drogas, são encaminhados ao Centro de Atenção Psicossocial – Álcool e outras drogas (CAPS-AD) III, que segundo a Prefeitura, hoje atende 85% dos usuários do Centro Pop e Nis.

    O Nis ou abrigão, como é popularmente conhecido, funciona no Alto da Serra. Possui dormitórios com leitos para pernoite para até 70 pessoas. As pessoas que são encaminhadas para o abrigo, por meio da abordagem do Centro Pop e Consultório de Rua, segundo a Prefeitura, recebem lanche noturno e contam com estrutura para higiene pessoal. São fornecidas roupas limpas e o usuário pode pernoitar nos leitos que possuem cobertores. 

    A equipe de reportagem visitou o Centro Pop na Rua Visconde do Bom Retiro, no Centro, onde foram feitas as entrevistas com os profissionais que atuam no equipamento. Foi solicitada uma visita e entrevista com os profissionais do NIS, mas até o fechamento desta reportagem não foi concedida. 

    Rede Pop Rua

    Em 2017, episódios de abordagens autoritárias e até truculentas feitas por agentes da Prefeitura motivaram profissionais e grupos de assistência à população de rua a formarem uma rede, com o objetivo de criar estratégias e promover ações de reinserção e assistência a essa população. A Rede Pop Rua – Rede de Atenção a População em Situação de Rua de Petrópolis, é formada por integrantes da sociedade civil, sociedade civil organizada, grupos pastorais, grupos sociais, Centro de Defesa dos Direitos Humanos (CDDH), equipamentos da assistência social e segurança pública, e é ligada também ao Gabinete da Cidadania. 

    A Rede possibilita um trabalho de parceria entre os grupos. Longe do modelo ideal de políticas públicas amplas e efetivas para a população de rua, os grupos trabalham, dentro dos equipamentos que têm disponíveis, a reinserção e a readaptação dessas pessoas na sociedade. 

    Número de pessoas em situação de rua dobra em um ano e NIS só tem vaga para 35% 

    Os três meses de inverno parecem durar uma eternidade para quem dorme nas ruas. Desde o início de junho, agentes da Secretaria de Assistência Social tem feito abordagens nas ruas do Centro, dentro das ações da Operação Inverno, para acolher e encaminhar a população em situação de rua para o NIS. Mas ainda assim, a maioria, continua se abrigando e se escondendo do frio e da chuva, nas vielas do Terminal Rodoviário do Centro, em praças e nas escadarias da Catedral São Pedro de Alcântara. Longe de ser um problema isolado, as baixas temperaturas só evidenciam ainda mais a necessidade de oferta de espaço adequado para essa população na cidade. 

    Com uma demanda de cerca de 200 pessoas em situação de rua, o NIS só dispõe de vagas para 35% delas – 70 vagas no total. O número de pessoas em situação de rua no município aumentou 50% comparado ao mesmo período do ano passado, quando era estimado 130 pessoas. Durante a Operação Inverno, foram disponibilizadas mais 18 leitos, em tendas da Defesa Civil montadas na área externa do núcleo. Apesar disso, a conta ainda não fecha. E a medida foi recebida com críticas pela Defensoria Pública no município. Segundo a defensora pública Marília Pimenta, as tendas não atendem a real necessidade das pessoas em situação de rua, que é a ampliação permanente de vagas no abrigo.

    Em outubro do ano passado, a defensora fez uma vistoria nos equipamentos de assistência do município. No NIS, a lista de irregularidades ficou extensa. As tendas que também foram utilizadas na Operação Inverno passada, segundo a Defensora, não eram adequadas, foram montadas em um local onde a cobertura de proteção está danificada. Banheiros femininos com as portas sem trincas, camas sem colchão nos dormitórios, armários para guarda de pertences que não tinham portas, foram alguns dos apontamentos do relatório feito pela defensoria. 

    Segundo a Prefeitura, o NIS atende atualmente, 21 usuários. O número de pessoas que frequentam o equipamento é flutuante, porque nem todos dormem todos os dias no local. Para muitos, aceitar a pernoite só acontece em casos de extrema necessidade. O abrigo tem suas regras de convivência, como a proibição do porte de bebida alcoólica, objetos cortantes, medicamentos e alimentos, que segundo a Prefeitura, por questão de qualidade e higiene são controlados pela equipe de manutenção das unidades de acolhimento. 

    Entre os desafios enfrentados pelos usuários para conseguir se manter no local, está principalmente a dificuldade em cumprir as regras de convivência. As principais reclamações dão conta da proibição de animais de estimação, e nos casos de casais e famílias que não podem ficar no mesmo dormitório. Os vínculos sociais e afetivos formados nas ruas são priorizados por eles. Regras de população domiciliada que nem sempre funciona para quem está acostumado a cumprir as próprias regras de sobrevivência nas ruas. 

    A defensora também visitou o Centro Pop. No relatório estão listados a insuficiência de profissionais para atendimento, o esquema de plantão deficitário dos agentes, e as condições ruins da estrutura física do prédio. O Centro Pop fica na Rua Visconde do Bom Retiro, no Centro, foi transferido para o local, em julho do ano passado. Este novo endereço não tem acessibilidade para deficientes físicos. O banheiro que existia no local na ocasião da vistoria também estava em condições ruins de uso, sendo um único para atender todos os usuários. 

    Outro apontamento feito pela Defensoria é a falta de dados de identificação da população de rua na cidade, como suas características socioeconômicas, formação escolar, entre outros. Nos distritos, também há uma grande concentração de pessoas em situação de rua, como em Nogueira, Corrêas, Itaipava e Posse, e pouca informação de como é o atendimento a essas pessoas, relata a defensora Marília. A Defensoria está preparando as recomendações pertinentes à vistoria que serão encaminhadas à Prefeitura. 

    A Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro atua na garantia de direitos das pessoas em situação em extrema vulnerabilidade, como é o caso das pessoas em situação de rua. Fiscaliza a atuação de órgãos públicos na garantia de direitos à assistência básica, saúde, educação, moradia, cidadania, entre outros. Na cidade a Defensoria mantém parceria com o Centro de Defesa dos Direitos Humanos (CDDH), o Centro Pop e Consultório de Rua.

    Leia também: O drama invisível e os altos riscos que vivem os moradores de rua 

    Caminho longo e tortuoso à frente de quem quer sair das ruas e voltar à família

    Últimas