• Chuvas de riso, chuvas de pranto

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  • 08/02/2020 15:00

    Mudáramos às pressas para o casarão do século XIX. Havia goteiras. Se chovia, eu ajudava a distribuir panelas pela casa. Sob a música da água, eu corria para a janela debruçada na Rua João Caetano, a atirar barquinhos de papel que desciam na enxurrada de águas barrentas do Caxambu. Também houve deliciosos banhos de chuva. E jogar bola em campos ensaboados de lama, pouco parando em pé, mas me divertindo a valer com os que, como eu, terminavam completamente encapados de barro.

    Mas logo aprendi a velha canção de fraternidade que ouvira, acho que dos Cantores de Ébano. Dizia da chuva no telhado que para nós era “cantiga de ninar”, mas que ao pobre nosso irmão era fria, fazendo lama no seu chão. Descobri ainda que chuva pode ser momento de bênçãos. No velho hino: “Chuvas de bênçãos teremos”. Minha mãe o acionava com bela voz, logo ao começo da chuvarada, antídoto de receios. E Jorge Benjor ensinou leves preces para que a chuva, que chovia sem parar, não molhasse o nosso amor: “por favor, chuva ruim, não molhe mais o meu amor assim”.

    Chuva pode dar riso e canções. Mas também pânicos, sirenes e marchas fúnebres. Desde 2011, para quem viveu a tragédia de mil mortos pelas serras, qualquer céu mais plúmbeo gera apreensões e insônia. Este ano parece assim. Menos canções, mais preces. Pensamos no El Niño. Mas consta que, com temperatura estável no Oceano Pacífico, El Niño e La Niña se encontram neutros. Já a temperatura do Atlântico Sul estaria superior à média, bagunçando o regime pluvial do Sudeste e Nordeste. Aumentou a frequência das Zonas de Convergência do Atlântico. Elas fazem gigantesco corredor de umidade, cortando diagonal no mapa brasileiro, desde a Amazônia, como aéreo Amazonas de nuvens de tempestade, que se precipitam ao solo no Sudeste.

    Dia desses, resolvendo coisas na “Vinida”, notei que os assuntos nos balcões, nos cafés, consultórios e mercados, era a chuva por vir. Pessoas preocupadas se conseguiriam voltar ao lar. Outras relatando recentes aventuras de enxurradas violentas, naufrágios de carros, gente presa em lojas ou ônibus por 4 horas. Chuvas assim expõem não só a nossa fragilidade frente ao grandioso da natureza, como também a debilidade de nossos conhecimentos. Estudadas calhas de prédios se mostram insuficientes, galerias pluviais de cidades orgulhosamente planejadas rebentaram nas enxurradas, piscinões de contenção não deram conta, revestimentos contra barreiras derreteram. Mas chuvas também expõem nossa ignorância e incivilidade, na ocupação irregular de encostas de risco, na prática de descartar lixo em lugares impróprios, na falta de dragagem de rios e limpeza de bueiros.

    A boa notícia é que a tragédia de 2011 gerou, em 2012, a criação do Sistema Nacional de Proteção e Defesa Civil. Da mera e insuficiente reatividade de antes, se evoluiu para certa proatividade. Vieram escalas de risco (vigilância, atenção, alerta, alerta máximo), avisos unificados emitidos por diversos órgãos de níveis municipal, estadual e federal, o cadastramento de voluntários e líderes comunitários, o sistema de sirenes e mapeamento de pontos de abrigo, mais os alertas pessoais por mensagens de SMS ou WhatsApp. Mas ainda falta muito a fazer na prevenção, especialmente na contenção do aquecimento global, exigindo-se de governos e cidadãos, mais ação e conscientização. Para que, quando chover, possamos, quem sabe, colecionar mais risos e cânticos e menos pânico e pranto.

    denilsoncdearaujo.blogspot.com

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