• Cantigas para ninar ninguém

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  • 31/03/2019 07:00

    No tempo, ninguém coloca rédeas. Embora sem cabresto, ele não altera a passada. Do rápido ou do lendo, é a vida que estabelece a velocidade. O desafio da sobrevivência está em seguir por esta travessia. As retas, as curvas, os precipícios dependem do destino traçado. Assinar a própria sina é um ato de coragem. Viver ainda é perigoso. Quando se busca a verdade, o perigo aumenta. Propagá-la é correr risco, pois a palavra abre as algemas do pensar. A liberdade não se resume no direito de ir e vir, mas também na expressão livre do pensamento. Quem não gosta de ouvir a verdade não tampa os ouvidos, manda calar a boca de quem fala.

    O Neu e o Rônio eram dois amigos. Gostavam de malhar o cérebro, mas não usavam tatuagem. Levantavam pesados problemas para exercitar o raciocínio lógico. Eram flexões e reflexões cerebrais, que as sinapses transpiravam exaustivamente. Não importava se o peso era individual ou social, nacional ou mundial, todos eram tratados com a mesma disposição. Não havia sedentarismo. Para manter a forma, liam compulsivamente. Esse era o problema deles.

    É válido ressaltar que não se tratava de dupla dinâmica como Batman e Robin, Tico e Teco, Debi & Loide, Nenly & Nenlerey, eram diferentes: o Neu era ateu e vinha da prosa para a poesia; o Rônio era cristão da linha tomista e ia da poesia para a prosa. No meio do caminho, encontraram-se, apesar das pedras.

    Eram casados com mulheres que gostavam de mandar nos maridos. Na verdade, elas mandavam, mas eles não obedeciam. As duas tinham características comuns: falavam pouco, usavam frases curtas, não alteravam a voz. Apesar das diferenças, conviviam bem.

    Naquele ano, surgiu um forte boato de que a previdência social iria mudar, pois diziam que estava deficitária. Mas não se tinha a exata noção do rombo causado pelas falcatruas. Vendo que eram grandes as mudanças anunciadas, Neu tratou de aposentar-se e conseguiu, deu um ufa!

    O Rônio ficou correndo atrás de papel. Contava tempo, pegava carteira, entrava em fila. O tempo de trabalho já tinha, mas teria que comprovar que havia trabalhado, embora o setor previdenciário soubesse disso. Mas mesmo assim, teria que levar documentos comprobatórios. Isso, ele achava necessário, porque há muitas mutretas. Honestidade não é como o vírus da gripe, que as pessoas podem contrair com um simples contato.

    Em um desses dias de correria, Rônio encontrou o Neu na praça que não tinha igreja. Ele estava entre os aposentados que davam milho aos pombos. Em ato de protesto contra o sedentarismo cerebral, o Neu resolveu recitar poesia para eles. Começou pegando pesado. De cara, recitou Pessoa, Lorca, Neruda, Brecht, Borges, Maiakovski, Castro Alves e por aí foi…

    Ele usou o clichê da melhor idade para combater a reumatismo cerebral e tatuar na lembrança belas vivências.

    Rônio, já escaldado, tinha medo de água fria, usava ironias e metáforas. Vendo aquela cena, começou a orar e a vigiar: orava, pedindo a Deus muitos anos de vida para aquela galera; e vigiava, porque aquele recital poderia ser mal interpretado por quem não gosta de ver o povo organizado.

    Após o recital, Rônio convidou o Neu para tomar um cafezinho na padaria e perguntou:

    — Por que você não ficou ali também dando milho aos pombos?

    — Existe uma pomba que precisa de um outro milho.

    — Qual?

    — A Pomba da Paz, que também se alimenta de poesia. E, se já não estamos mais nas fábricas, nem nas construções, podemos continuar o nosso trabalho na praça, o povo precisa se organizar.


    E foi assim que o Neu e Rônio começaram a pensar juntos por meio da Poesia.

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