• Baú de lembranças

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  • 29/02/2016 12:00

    Às vezes, ficamos assim sensibilizados por gestos simples que quebram a nossa rotina como quem para para ver uma flor romper o asfalto. Na semana que findou, por circunstâncias fora do meu controle, tive que passar por uma situação difícil. Um amigo soube do fato, mas sem condições de mudar especificamente aquele instante, de repente me aparece e diz: “só vim aqui te dar um abraço”. Esse simples gesto de amizade recarregou as minhas baterias. Estas não estavam arriadas, porque, no domingo, almocei uma feijoada deliciosíssima em um lar, no qual me sinto membro da família. O carinho com que sempre sou recebido dissolve qualquer sentimento de solidão. A união em família consolida a certeza de que o amor fraterno é desprovido de interesses materiais e traz a paz que há no colo de mãe.

    No sábado da referida semana, ganhei de presente cinco números da revista Careta de 1947 e um “Almanaque do Tico-tico” do mesmo ano. Guardei-os com o sentimento de herança, pois esse amigo sabe do meu fascínio por documentos literários. Dele, também recebi dois números do jornal paranaense “Nicolau”. Em um deles, há um trecho do livro “Catatau” de Paulo Leminski. Além dos jornais e revistas que hoje já se tornaram documentos históricos, pude perceber que ele os guardou com carinho, pois estão em perfeito estado. Ao recebê-los, ganhei a responsabilidade de também mantê-los sob os mesmos cuidados. Mas é assim que o fio da amizade se mantém esticado até a eternidade. São os gestos que guardamos no coração que nos fazem escrever a memória da nossa própria história: – é delicioso lembrar os momentos felizes, apesar das adversidades da vida. A riqueza de uma amizade não se coloca em uma conta bancária. 

    Outro amigo, que não perde o humor, sabe que eu adoro jaca e que minha mulher detesta, veio passar o fim de semana em Petrópolis. Na subida da serra, comprou essa saborosa fruta. No fim da tarde da sexta-feira, quando saia de casa para dar aula no turno da noite, o telefone toca: “cara, desce rápido. Tô aqui em frente ao teu prédio. Trouxe um negócio que você vai gostar”. Como só penso em livro, achei que seria alguma obra rara. 

    Não tive tempo para raciocinar, o trânsito da Marechal Deodoro, no fim de tarde, é caótico.  O amigo estava no estacionamento da Praça Paulo Carneiro: – “pega aí no porta-malas” – havia uma enorme jaca madura, o cheiro exalava longe.  

    Demonstrando pressa, ele me falou: “deixa eu ir. Mais tarde te ligo”. 

    Só me dei conta da peça que ele me arrumou, quando cheguei ao elevador: uma vizinha, com o nariz retorcido, exclamou: “grande, né! O senhor gosta disso?!!” – Adoro!

    Na resposta, lembrei-me da minha mulher. Mas não tive tempo para inventa desculpas. Quando abri a porta da cozinha, logo ouvi o tom da reprovação: “o que é isso?!” Uma frase saltou da ponta da língua que eu mesmo me surpreendi: “amar é também aturar o cheiro da jaca do marido”.  E procurei arrumar uma solução: “Pode deixar, amanhã cedo vou dar um jeito nisso. Agora tenho que ir para a escola”. 

    Quando voltei para casa, sem saber o que poderia encontrar, entrei pela porta da cozinha. O cheiro da jaca estava impregnado. A porta entre a cozinha e a sala estava fechada. Abri-a. Ouvi outra frase lacônica: 

    – Não fiz nada para você jantar. Arruma aí qualquer coisa para você comer na geladeira.

    Peguei o telefone, liguei para o celular do meu amigo que logo identificou a minha chamada:

    – Aí, gostou? 

    – Gostei. Amanhã vou comer jaca. Mas hoje estou jantando sanduiche. A cozinha ficou interditada. 

    Ataualpa A.P. Filho


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