• ATAUALPA SABE

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  • 13/08/2016 12:00

    Aquele homem entrou livraria adentro com a avidez típica de um dependente em crise de abstinência. Era um adicto poético, atrás da injeção de uma rima, um cálice de metáfora. Vinha, em verdade, atrás de banhar o ser na bacia de um verso. 

    Foi olhado de lado pelo desdém das estantes transbordando livros da moda. Coleções boas de enfeitar estantes, volumes de carregar no sovaco para combinar com a bolsa de oncinha, livros de posar por fora a falsa robustez do intelecto escasso, livros de se antenar com as rasteirices do “face”, livros pesos de papel, ocos best-sellers abarrotando as estantes. Mas houve estantes remanescentes, compreensivas, de romancistas nobres, bons ensaístas, certos historiadores. E os clássicos. Estão aí desde a fundação do mundo, sólidos e monumentais, pacientemente observando passar os homens. 

    Se aqueles rasos best-sellers desprezaram de soslaio o poeta carente, estes últimos, pelos olhos das capas consagradas entreolharam-se, apiedados do consumidor de poesia, quando o vendedor lhe disse. É, a prateleira da poesia… Pois é. Tivemos que colocá-la naquele canto. Que desencanto para o poeta ansioso! Homem bem servido de verso e de corpo, apideou-se da poesia acuada, no subterrâneo do balcão. Como, no calabouço, um úmido cão. Um cavalete obstaculizava a vista e dificultava o alcance, espécie de caverna rasteira. Adega oculta. Nem se diga em esfarrapada desculpa que coisas valiosas merecem mesmo cofres, esconderijos, cuidados. Em livraria, poesia é nobreza, e reis, em salas do trono, coroa devem usar. Livro de boa poesia merece soberania de altares, à vista, acessível, reinante.

    Mas aquele poeta é homem pacífico, acostumado às palavra-dores e andores das palavras. Sabe pertencer a uma tribo em vias de extinção. Por isso, não protestou. Sorrindo, encolheu os ombros, tentando caber no buraco da poesia exilada. Deram-lhe banqueta minúscula e o poeta ficou ali, pária que mandavam comer na cozinha, o homem grande encurvado ao rés do chão, atrás da poesia que viera encontrar. Uma cena de cartum – o Linus do Snoopy com seu pianinho – que, em si, é tragicômico poema. Demonstra essa exclusão, um degredo ao qual se relega tudo o que a TV não dispõe, tudo o que no twiter não bomba. Poesia é um ente que demanda intelecto vagar por certa preguiça criativa. Em tempos de céleres cérebros, ativados só por reflexos, despreza-se a âncora de alma a que a reflexão da poesia se presta. 

     Depois, trocamos e-mails e o poeta a quem, porque a viveu, dedico essa crônica, meu amigo Ataualpa A. P. Filho, me atualizou sobre essa Petrópolis sem livrarias: cidade com 300 mil habitantes, e apenas duas livrarias no centro histórico! Município com tradição de Academia de Letras das mais importantes do país, morada de grandes escritores, local de fazer-se literatura de qualidade, que não escapa do problema nacional. Embora seja lenda urbana aquele negócio de só Buenos Aires ter mais livrarias que o Brasil, o fato é que, com mais de 5.000 municípios, e 200 milhões de habitantes, temos apenas umas 3.000 livrarias. Avareza agravada pela escassez de bibliotecas e, nas que existem, pela esqualidez dos acervos. Em tempos de miséria da alma, com livrarias e bibliotecas poucas, a poesia, essa nobre lanterna do coração, vira essa prima pobre a ser exilada em subterrâneos balcões. Mas para quem sabe das coisas, é pepita cujo garimpo vale o esforço. Ataualpa sabe. Saiba você também.

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