• As cigarras invisíveis

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  • 12/07/2020 11:09

    Acredito que você já ouviu, pelo menos, uma versão da história fabulosa: “A Cigarra e a Formiga”. 

    Nesta pandemia provocada pela Covid-19, nós que fazemos parte do grupo de risco por causa da idade tivemos a oportunidade de ouvir diversas versões dessa fábula escrita por Esopo, escritor grego que viveu antes de Cristo, mas que até hoje leva a refletir sobre a importância do trabalho artístico. 

    Jean de La Fontaine, Monteiro Lobato são dois grandes autores que apresentaram uma releitura das obras de Esopo. Utilizando a linguagem infantil, levaram também os adultos à reflexão.

    Neste período de quarentena, é válido pensar sobre o que a cigarra e a formiga passaram a simbolizar no contexto social. Até pelo senso comum, a formiga representa o trabalho contínuo, persistente, provedor, que acumula alimentos para os períodos difíceis. É comum ouvir a expressão “trabalho de formiguinha” associada à prática laboriosamente perseverante. 

    A cigarra entrou nessa história na posição antagônica, associada ao descompromisso com o trabalho sem pensar no amanhã, vivendo apenas para curtir o presente. Pejorativamente, em algumas versões da fábula, a imagem dela recebe a conotação da malandragem. E, por se divertir no verão, padece de frio e fome no inverno.

    Neste caos pandêmico, a Arte tem sido um bálsamo para a alma, tem aliviado tensões, vem unindo pessoas, proporcionando entretenimentos, criando momentos de descontração. Em síntese, está evidente que a Arte reconstrói, desestabiliza o tédio, reveste o espírito da criatividade e permite que a criatura se torne um criador. 

    – Quem nesta quarentena não pegou um livro para ler? Quem não parou para ouvir uma música? Quem não assistiu a um filme, a um vídeo, a espetáculos gravados, a uma “live”?… 

    A indústria cultural também cria emprego, gera renda e impostos. É preciso entender que o trabalho das cigarras é também uma atividade produtiva inserida economicamente no desenvolvimento do Estado.

    Fiquei feliz quanto vi sancionada a “Lei Aldir Blanc”, nome dado à PL 1075/2020, que estabeleceu um auxílio emergencial para o setor cultural neste período de pandemia. Segundo o Art. 2º da citada lei, “a União entregará aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, em parcela única, no exercício de 2020, o valor de R$ 3.000.000.000,00 (três bilhões de reais) para aplicação, pelos Poderes Executivos locais, em ações emergenciais de apoio ao setor cultural.”  

    Ficam aqui só algumas as dúvidas: – como esse dinheiro vai chegar aos 5.570 municípios existentes no país? Todos os artistas que estão incluídos entre “os invisíveis” receberão o que lhe é de direito?…

    Se o auxílio emergencial centralizado na Caixa Econômica destinado aos trabalhadores informais, microempreendedores individuais (MEI), autônomos e desempregados ficou marcado por várias irregularidades, “será que será” diferente com esses três bilhões de reais para atender às “cigarras invisíveis” do segmento cultural?… 

    Quando pensamos na estrutura burocrática da gestão pública e na nociva ação dos vermes da corrupção, cresce uma tristeza pela visão pessimista que temos diante do histórico das ações ilícitas sempre atreladas ao erário da Nação…

    A lei criada veio ao encontro das necessidades de muitos brasileiros que se dedicam à Arte sem os holofotes da fama e sem o assédio proveniente do sucesso. Amam o que fazem pelo sonho que carregam. Eu os vejo como heróis de suas próprias batalhas. 

    Muitos que não desistiram do servir à Arte só tiveram reconhecimentos depois de falecidos. O tempo é que desvela o talento. O trabalho da formiga sem o canto da cigarra torna-se mais árduo. 

    Carregamos dentro de nós um “eu formiga” e um “eu cigarra”. Sabemos da importância do pão para alimentar o corpo, mas não vivemos sem a Arte que alimenta a nossa alma.

     

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