• A uma leitora com carinho

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  • 19/05/2019 07:00

    Nos últimos anos, tenho visto, com frequência, o tempo levar, para a eternidade, pessoas por quem tenho grande apreço. A consciência da nossa efemeridade ajuda a assimilar os desígnios da morte, mas não elimina o sentimento de pesar, nem a tristeza do vazio que a ausência do ente querido nos deixa.

    A ação contínua e progressiva do tempo sobre a espécie humana leva-nos às cinzas, independente da etnia, das convicções ideológicas ou da classe social. A morte nos une ao nada. Acreditando ou não na onipotência do Criador, o fato é que o homem é um ser contingente, limitado a uma matéria perecível, que não suporta a ação do tempo. Cedo ou tarde, a morte vem. Isso é certo. A incerteza está no quando.

    No dia 15/05, recebi a notícia do falecimento de uma assídua leitora que, aos 89 anos de idade, ainda cultivava o hábito da leitura como ofício diário. O livro foi seu companheiro até nas últimas horas. O desejo dela foi atendido: ter sobre o corpo, na horizontal despedida, um livro. Foi colocado, entre as suas mãos postas, o último livro que lia “Quase Tudo”, Memórias de Danuza Leão, com a orelha marcando a página em que parara de ler para descansar, após o almoço. 

    Partiu assim como quem acaba de ler um livro e fecha os olhos para refletir. Ainda sobre o seu corpo, vestido de tons de azul, estava “Minutos de Sabedoria” de C. Torres Pastorino.

    O Alzheimer já lhe havia roubado o elo com a realidade, mas não conseguira tirá-la do universo da leitura. A interação com os autores que lia refletia o senso crítico: sublinhava o que achava interessante, fazia anotações. Nas páginas dos livros estão as suas pegadas, convergências e divergências que demonstram a reflexão da leitura, a interação dialética de um processo solitário e solidário concomitantemente. A imersão no ato de ler exige cumplicidade, pois através dele, o leitor torna-se coautor, porque amplia a obra pela vertente que une experiências vividas. Dar-se o encontro de universos eclipsados.

    No livro “Correio Feminino” de Clarice Lispector, a leitora a quem me refiro destacou o seguinte trecho de “Vícios Modernos”:

    “Nós, mulheres, principalmente, que sabemos encontrar tempo para tantas coisas, devemos arranjar uns minutos diários para a leitura. Não é necessária a leitura prolongada, nem são precisos os livros complicados. Coisa leve, variada, que nos dê uma visão rápida do mundo em que estamos e do que acontece nele, no campo das ciências, das artes, da política e… dos ‘disse-me-disse’. Revistas, por exemplo, contendo mais matéria redacional que ilustrações, que apresentem essa matéria de forma inteligente, atraente, divertida. Esse é um tipo de revista que desejaremos ler e que podemos ler. Leitura assim não cansa, não toma tempo e nos liberta desse prejudicial vício moderno.”

    Em outro livro de Clarice, “Um Sopro de Vida”, na parte “O Sonho acordado é que é a realidade”, ela destacou: “A sensação é a alma do mundo. A inteligência é uma sensação? Em Ângela é.” 

    No final das tardes de domingo, com frequência, eu recebia as suas ligações comentando as minhas crônicas publicadas neste jornal. Saudade é isto: a presença da ausência…

    Ângela Hebbe Mascheroni Werneck encontrou, na leitura, um mundo em que a ficção se tornou a realidade. Nem o Alzheimer a fez fugir desse universo. Fechou o livro da vida.

    P.S: A Academia Petropolitana de Educação externa aqui o sentimento de tristeza pelo falecimento da professora acadêmica Ângela Hebbe Mascheroni Werneck e da senhora Maria do Carmo Ferreira, esposa do acadêmico Sebastião Ferreira.

    Ataualpa A. P. Filho



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