• A natureza humana

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  • 05/09/2016 12:02

    “Que animal anda pela manhã sobre quatro patas, à tarde sobre duas e à noite sobre três?”

     Decifrar o enigma da esfinge não basta, é preciso entender o mistério do bicho homem. Cada ser é único, independente da etnia. Somos constituídos da matéria que serve de banquete aos vermes, os operários das ruínas, conforme nos adverte Augusto dos Anjos, no soneto “Psicologia de um Vencido”. Somos perecíveis, apodreceremos algum dia ou seremos cremados. “Vimos do pó e ao pó voltaremos”. Nessa travessia, sonhamos com a eternidade. Estamos aqui de passagem. Esta, chamamos de vida.

    Na fase que andamos de quatro patas, as lágrimas não são retidas, nem contidas. Temos a ingenuidade e a espontaneidade que a verdade exige. Mas quando o bicho homem se acha adulto (adulterado), apodera-se da sagacidade, da vileza, do orgulho e sente-se senhor do universo, superior ao tempo. Mas este sabe mover o destino. E raros são os que, com o peso dos anos sobre os ombros, conseguem equilibrar-se em três patas e desprender-se da arrogância. E assim encontrar a humildade como o caminho que o levará à eternidade. 

    O ciclo da vida humana é imprevisível. Sabemos que biologicamente teremos um fim. A carne humana também deteriora. Epiderme preta, branca ou amarela, pouco importa, a morte é para todos. “Cada minuto da vida/ Nunca é mais, é sempre menos/ Ser é apenas uma face/ Do não ser, e não do ser./ Desde o instante em que se nasce/ Já se começa a morrer." – Afirmara Cassiano Ricardo no poema “O Relógio”.

    As ações do tempo nos fazem pensar sobre o viver. Quanto mais me deparo com as limitações impostas pelo passar dos anos, mais fico convicto de que a vaidade é uma estupidez.

    No fim da tarde do sábado passado, estive na casa de uma amiga. Fui convidado para um lanche, no qual se comemorou os 90 anos do pai dela, que hoje sofre do mal de Alzheimer. Este senhor me ensinou muito: eu o vi forte, dinâmico, questionador e com uma memória fabulosa. Mas agora, devido a doença, padece de um esquecimento crônico. Em determinados momentos, rompe com a lógica.  

    Presencie, no dia citado, algumas cenas que me levaram a escrever este texto.

    Quando cheguei à casa dele, logo fui cumprimentá-lo:

    – Parabéns! Feliz aniversário! – Falei próximo ao ouvido dele, porque já quase não ouve.

    – Obrigado! Hoje tô completando 46 anos! – Para cada convidado que chegava, ele dava uma idade diferente. Ao ver isso, a filha falou:

    – Pai, você está completando 90 anos!

    – Isso tudo! Pô! Eu não sabia…

    Vendo a filha arrumando a mesa da sala, perguntou:

    – Cadê a tua mãe?

    – Ela já faleceu…

    – Ela sabe disso? Alguém já falou isso pra ela?!

    A filha não respondeu, apenas balançou a cabeça e saiu da sala e foi para cozinha. Quando voltou com uma jarra de suco, ele falou:

    – Tua mãe morreu, mas a minha mulher tá viva. Já deve estar chegando aí. Foi ao médico, mas vai voltar logo…

    Essa doença nos desconecta do real. A lógica se perde entre imagens de um passado longínquo. A lembrança dos pais e das irmãs, ele mantém viva. O filho dele, que faleceu há um ano, provocou-lhe uma dor profunda. Essa dor ainda lateja. Ele ainda o espera voltar do trabalho.

    – Mesmo os que não acreditam em Deus, devem ler isto:

    “Meu filho, ampara o teu pai na velhice e não lhe causes desgosto enquanto ele vive. Mesmo que ele esteja perdendo a lucidez, procura ser compreensivo para com ele; não o humilhes em nenhum dos dias de sua vida: a caridade feita a teu pai não será esquecida, mas servirá para reparar os teus pecados e, na justiça, será para tua edificação.” (Eclo, 3, 12 -17)


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