• A desmomória nacional e nossa autoestima

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  • 14/11/2020 00:01

    Imagine uma criança que perdeu os pais e foi educada por uma tia a lhe repetir diariamente as piores coisas sobre sua mãe e seu pai. Ninguém precisa ser psicólogo para saber como vai ficar a autoestima da pobre criança diante de tamanha crueldade mental.

    E seu eu lhe dissesse, caro(a) leitor(a), que algo semelhante vem ocorrendo com nossa memória nacional, partindo de pessoas que estariam, em princípio, de boa-fé e até têm formação profissional para deitar falação sobre os defeitos de fabricação de que o Brasil foi vítima em sua formação histórico-cultural?

    Tenho respeito intelectual pelo Prof. Roberto DaMatta, antropólogo e sociólogo, com obras importantes publicadas, e crítico do nosso jeitinho. Em artigo em O Globo, de 11.11.2020, “Uma vitória da democracia”, ele nos fala de um conselho inesquecível que lhe deu, em 1963, o Prof. Dick Moneygrand, um brasilianista. A frase-chave foi a seguinte: “Na América, faça sempre o contrário do que manda seu brasileiro coração”. E lhe deu exemplos: comer pizza com a mão, obedecer ao que está escrito, jamais encostar a mão em seu interlocutor, não olhar fixamente para uma bela mulher, ser pontualíssimo e ficar sempre calmo por mais complicada que uma situação fosse. Alertou-o que lá não existe o “Você sabe com quem está falando?” DaMatta poderia nos ter dito que Dom Pedro II passaria no teste. Já as práticas “republicanas” do Patropi…

    No espírito de réplica civilizada, faço alguns comentários, dando contra-exemplos, inclusive sobre outros autores, que só miram em nossos infinitos defeitos culturais, ou seja, o lado escuro da calçada. Não se dão conta dos desvios de conduta que se acumularam desde o 15 de novembro de 1889.

    O Prof. Carlos Lessa, em palestra dada em Natal-RN (2005), nos dizia que o brasileiro não tinha um problema de baixa autoestima ao longo do século XIX tamanha era a respeitabilidade, interna e externa, do Estado imperial brasileiro. Um contraexemplo sobre o jeitinho se passou no centro do Rio de Janeiro em que o cocheiro de Pedro II, ao ser informado que não poderia estacionar ali, quis dar uma carteirada no guarda dizendo que se tratava do coche do imperador. Assim que soube da façanha do cocheiro, Pedro II chamou-o à ordem, e lhe disse que fosse lá pagar a multa, pois ele, como chefe de Estado, deveria ser o primeiro a dar o exemplo.

    Ou ainda a resposta dada por Pedro II ao presidente do Conselho de Ministros, quando este quis saber por que havia sancionado de imediato o aumento dos professores e vinha postergando a autorização do justo aumento pleiteado pelos ministros: “Muito simples, caro ministro. Quando, no futuro, eu precisar de ministros competentes, eu os terei”. (Um professor do ensino médio, em 1888, no Rio de Janeiro, ganhava o triplo do que ganham os atuais em termos reais!) Época em que os valores eram outros e a república os pôs abaixo sem lhes dar tempo de frutificar.

    O Prof. DaMatta, no segundo parágrafo, elogia a serenidade democrática, que nos falta, com que os EUA enfrentaram a Guerra Civil, o macarthismo desvairado e o movimento pelas liberdades civis na década de 1960 dentre outros eventos marcantes da história americana. Mas não menciona o elevado grau de cinismo nessa serenidade democrática. Senão, vejamos.

    A Guerra Civil resultou, em boa medida, de um país que não soube tratar a questão da escravidão por etapas. Alforrias, por exemplo, foram praticamente inexistentes, mas numerosas no Brasil. No Sul dos EUA, após a guerra, eles passaram leis que, na prática, aboliram o direito de votar dos negros. Mais a vigência nacional da cínica doutrina do “iguais, mas separados”, só abolida na década de 1960(!). E nós é que levamos a pecha de ser o último país a abolir a escravidão, mesmo com 80% de libertos bem antes da Lei Áurea!

    O Prof. DaMatta poderia ter ressaltado a serenidade permanente de Dom Pedro II e da Princesa Isabel, inclusive no único período de nossa história em que se combateu, de fato, a desigualdade. Eu mesmo, durante a campanha do plebiscito, em 1993, me dei conta da súbita noção de compostura das pessoas ao se dirigirem a príncipes educados, simples e sem afetação alguma. Imagine um monarca, cuja posição hereditária não depende de grupos políticos ou econômicos, com inerente visão de longo prazo imprescindível ao bem comum e cujo interesse pessoal se confunde com o público. A compostura surge natu-ralmente pela confiança que seres humanos com tais predicados inspiram.

    Mas o Prof. DaMatta não está sozinho nessa amnésia histórica a ser superada em benefício de nossa autoestima. A historiadora Lilian Schwartz reclamou do fato de Dom Pedro II não prestar contas da dotação da Coroa. Haveria melhor prestação de contas do que congelar, durante quase meio século, esse valor no orçamento do Império, que caiu de 5% para 0,5%! Pedro II ainda deixava de pintar seu próprio palácio por achar que gastos mais importantes, como bolsas de estudo, deveriam ter prioridade.

    Outra companheira dele e dela foi a historiadora Mary Del Priore em seu livro “O Castelo de Papel” em que o desrespeito a fatos históricos sobre a Prin-cesa Isabel é lastimável. Isabel foi educada pela Condessa de Barral, mulher de personalidade forte, exímia negociadora, abolicionista e tutora da Princesa por quase uma década ao longo de seus anos de formação. Como é que uma mulher tão incisiva poderia ter dado à luz a uma pupila ingênua, carola e submissa ao marido, como tenta nos fazer crer Del Piore? Logo Isabel, que chegou a discordar do conde D’Eu nas reuniões do Conselho de Estado?

    Ou será que ainda não se deram conta de que o problema não foi 1964, mas sim, 1889. O legado do Império foi de um país que lutou e deu um passo gigantesco na redução da desigualdade, preocupado com o meio-ambiente, sem corrupção sistêmica, inflação baixíssima, com políticos que se davam o respeito como nos garante Ruy Barbosa e que gozava de extremo respeito internacional. A foto da república hoje é o próprio negativo de tudo isso. No 15 de Novembro, comemorar o quê?

     

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