Outro olhar sobre o coronavírus
O coronavírus caiu como uma bomba tóxica. Perda brutal de vidas humanas, falências, sobrevivência impossível para os chamados invisíveis sem condições de exercer sua atividade, desemprego e ainda muitos atritos na hora de adotar uma estratégia coordenada de enfrentamento da pandemia. Em contrapartida, pelo lado positivo, tivemos que usar a imaginação na busca de alternativas como videoconferências, aulas pela internet, auxílio emergencial para evitar uma hecatombe econômica, uso intenso das entregas a domicílio, criatividade no uso do tempo em casa dentre outras possibilidades insuspeitas até então.
Foi então que me lembrei do livro de Richard Wiseman intitulado “O Fator Sorte”. Ele pesquisou, durante alguns anos, dois grupos de pessoas: aqueles que se achavam completamente azarados e os que se julgavam supersortudos. O exemplo emblemático em seu livro é um assalto a banco em que um cliente na fila do caixa leva um tiro no braço. O azarado convicto pensa assim: “Só eu mesmo. Poderia estra ali meia hora antes ou depois do assalto, mas não. Tinha que ser naquele exato momento!”. Para o sortudo, a mente positiva lhe diz: “O tiro poderia ter sido fatal, na cabeça ou no coração. Sorte é comigo mesmo!”. Ou seja, o fato é exatamente o mesmo, mas o enquadramento cerebral de quem o vivenciou é diferente. A mensagem é que sorte vem de dentro para fora.
Essa situação, azarados versus sortudos, nos ajuda a ver a pandemia de outro modo e não somente o lado ruim. A educação foi um dos setores mais seriamente atingidos com o fechamento das escolas. Sal Khan é um educador americano de origem indiana, que se celebrizou por fundar um portal de ensino gratuito com aulas da (temida) matemática, um medo que não é só de brasileiros; afeta estudantes do mundo inteiro. Em entrevista recente ao jornal O Globo, de 13.10.2020, ele fala sobre um efeito muito positivo da pandemia. Os pais, em confinamento residencial, se viram praticamente obrigados a participar do processo educacional dos filhos em função de as aulas passarem a ser via internet. Abriu-se um novo portal que é o de uma geração de pais mais engajada na educação dos filhos, ressalta Sal Khan.
De fato, essa realidade adversa trouxe à tona a necessidade da presença da família no processo educacional de seus filhos. A escola não é tudo. O professor não substitui os pais. O êxito na absorção de habilidades derivadas da aprendizagem pode ser medido pelas chamadas variáveis latentes, ou seja, variáveis que não são diretamente observáveis, mas que são passíveis de sê-lo através de outras para as quais existem dados. Qualidade de vida, confiança nos negócios, felicidade, dentre outras, são variáveis latentes. Para medir a qualidade de vida, por exemplo, podemos recorrer a variáveis como riqueza, emprego, meio-ambiente, saúde mental e física, escolaridade etc.
Nessa linha, Felipe R. Diniz apresentou uma tese de doutorado ao departamento de economia da Universidade de Chicago (2008), que investiga a formação de habilidades cognitivas. As principais conclusões são as seguintes: (a) investimentos em educação em casa e na escola têm impacto significativo na aprendizagem exitosa; (b) na fase inicial da aprendizagem, o nível educacional da mãe pesa de modo considerável no êxito subsequente do estudante; (c) os investimentos da família em educação reagem positivamente ao investimento em boas escolas; (d) o efeito direto relativo do investimento na aprendizagem formal (escola) é maior do que o indireto, embora este último tenha impacto positivo e significativo; e (e) o nível socioeconômico das famílias impacta positivamente o nível do investimento delas em insumos educacionais.
Resumindo: o pleno êxito da aprendizagem do aluno depende da escola e muito também do acompanhamento dos pais ao longo do processo. Como a pandemia perdurou por bem mais de meio ano, ela abriu espaço para que as famílias absorvessem essa mudança de comportamento quanto à importância da presença dos pais. A educação brasileira, setor em que governo e famílias precisam se reinventar, acabou – quem diria? – beneficiada pelo coronavírus.
Mas as mudanças com sinal positivo vão além. Nos negócios, nas pesquisas e mesmo na máquina pública, a proliferação de videoconferências foi marcante. Descobriu-se que reuniões de elevado custo, que exigiam transporte terrestre e até aéreo dos participantes, podiam ser realizadas via internet, sem perda de eficiência, com significativo corte nos custos, que inclui redução de espaços destinados a escritórios. Na verdade, os programas para realizar reuniões a distância estavam à disposição com custo mínimo de quem quisesse fazer uso deles. Mas a inércia falou mais alto, e as reuniões continuavam a ser presenciais. Estranhamente, o coronavírus acabou funcionando, digamos, como uma espécie de nova roda que manteve o planeta terra girando.
A própria corrida em busca de uma vacina contra a Covid-19 foi turbinada. Sem dúvida que o acelerador do processo foi a velha necessidade e sua urgência para ontem. Sabe-se que a guerra convencional tem também o efeito de apressar tudo de que precisa nas pesquisas e produção bélicas. A atual guerra do bem contra essa terrível peste também exigiu pressa para pôr fim às mortes que, mesmo em declínio, continuam a ceifar vidas. Certamente, processos de pesquisas de vacinas, que poderiam levar anos para chegar a bom termo, no futuro, provavelmente, vão ser realizados em ritmo bem mais acelerado em função da expertise ganha no combate ao atual vírus.
Sal Khan, no final da entrevista, chama a atenção para duas mudanças de comportamento em andamento em função da covid-19. A primeira reforça o que foi dito na pesquisa de Felipe Diniz sobre o papel dos pais. Estes, segundo Khan, não podem delegar todo o futuro dos filhos ao sistema escolar. A segunda é que ele acredita que as escolas serão mais flexíveis e interativas dada a variedade de modelos de ensino que apareceram na quarentena. Ao invés de reclamarmos do tiro no braço da covid-19, que tal vê-la com outros olhos, aqueles que nos transmitem aprendizado e esperança no futuro?