• Ouvir e contar “estórias”

  • Continua após o anúncio
  • Continua após o anúncio
  • 09/09/2020 09:30

    Há algumas semanas, escrevi dois artigos comentando sobre o valor das Artes para o desenvolvimento humano. Desde a semana passada, tem sido veiculada nos canais abertos uma campanha de incentivo à leitura em família, “conte para mim”. Em vista disso, muitos leitores solicitaram que eu comentasse a importância da Literatura para o desenvolvimento cognitivo. Grande desafio este!

     

    Vou começar lembrando uma sabedoria ancestral: as estórias (grafadas desse modo propositalmente) são representações simbólicas do mundo e das experiências vividas. Nossas estórias, ditas infantis, são compilações de narrativas de tradição oral, passadas de gerações a gerações. Falarei sobre essa simbologia em outra oportunidade.

     

    Está inscrito no DNA da espécie humana a habilidade para a música (a musicalidade), o traço (desenho), o gesto e a mímica (arte cênica), a linguagem oral e a capacidade de narrar os fatos. A leitura e a escrita são aprendizagens culturais. A neurociência ensina que os dois hemisférios do cérebro são acionados em partes específicas para produzirmos a fala. Sim, os dois lados, não apenas um como se imaginava. As ressonâncias magnéticas permitem visualizar o cérebro em ação no ato da fala.

     

    Isso significa que a linguagem humana requer uma integração de diferentes conexões neurais que envolvem múltiplas funções, principalmente, as motoras, auditivas, organizações imagéticas, sintéticas, simbólicas, entre outras. A criança aprende a falar pela capacidade mimética, isto é, nossos neurônios-espelho permitem que imitemos o que observamos e ouvimos. O órgão da audição é o único que quando nasce está perfeitamente maduro, pronto para “escutar” o mundo. No início, a criança apenas imita os sons que ouve. Não compreende o seu significado, está função depende de amadurecimento biológico do cérebro e este é gradativo.

     

    Porém, ela é capaz de captar as emoções pelo tom da voz de quem interage com ela. Lembra-se do DNA da musicalidade? As emoções são distinguidas pelo tom. A mãe identifica a causa do choro da criança pelo tom. Quando narramos estórias desde a mais tenra idade estamos desenvolvendo neste cérebro a capacidade de internalizar a sintaxe e a lógica da linguagem humana, de um idioma; ampliando vocabulário; ativando áreas do cérebro correspondentes às ações dos personagens, que são imitadas pelos nossos neurônios-espelho; desenvolvendo a capacidade de operações lógicas como comparação, associação, classificação, análise, síntese, etc.; construindo a empatia, que é a capacidade de se colocar no lugar do outro.

     

    É devido à empatia que nós choramos, ou rimos, quando ouvimos uma narrativa que nos desperta emoções. Inconscientemente, nós nos colocamos no lugar da personagem. Nosso cérebro vive a estória narrada. Com isso, ainda que nosso cérebro não saiba a diferença, nós aprendemos a distinguir a realidade da fantasia, aprendizagem fundamental para a saúde física e emocional. Os medos infantis são elaborados emocionalmente nas repetições das estórias. A criança aprende que pode superá-los, que pode reescrever um novo final, se for o caso. Narrativas com final feliz são importantíssimas nos anos iniciais.

     

    É também fundamental que a criança aprenda a recontar a narrativa que ouviu. Esse exercício de reconto auxilia na capacidade de organizar o pensamento dentro de uma sequência lógico-temporal. Se a criança ainda não fala direito, peça a ela para usar o corpo e imitar a parte que mais gostou, ou aquela que a assustou… Quantas pessoas você conhece que têm dificuldades para organizar seu pensamento, falar em público e expressar emoções? O reconto, a capacidade de falar com as próprias palavras aquilo que o outro disse, interfere diretamente na capacidade de compreender o que se lê. Na fase adulta, ajuda na escrita de trabalhos acadêmicos.

     

    À medida que amadurecemos as narrativas mudam. Chegam a nós os relatos pessoais, os contos heroicos, os de suspense, humor, terror… diferentes gêneros e estilos. Aliás, a linguagem humana foi criada, inventada, exatamente para satisfazer a nossa necessidade de contar para o outro nossas experiências pessoais. Imagine, eu enfrento um gigante sozinha, e ninguém fica sabendo!

     

    Antes mesmo que a linguagem oral fosse desenvolvida, nós já usávamos a mímica, a linguagem dos gestos e a corporal, além dos sons possíveis para nos comunicarmos e narrarmos os acontecimentos; para ensinarmos ao outro aquilo que aprendemos; para demonstrarmos afeição ou qualquer outra emoção.

     

    Eu ouso afirmar que narrar, descrever, dissertar são formas de comunicação inscritas no nosso DNA. Fazem parte da sobrevivência da espécie, bem como a música, o desenho e a mímica. O aperfeiçoamento de qualquer linguagem é aprendizado cultural.

     

    É lamentável que a escola dê tão pouco valor à produção literária! Ela é considerada atividade extra e sempre valendo nota, ou então, aula de Redação para o ENEM! O resultado disso nós vemos nas avaliações nacionais e internacionais.

    Últimas