• O DESEMBARGADOR, O FISCAL E PEDRO II

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  • 25/07/2020 00:01

              Merval Pereira, em sua coluna de o Globo, de 21.07.2020, intitulada “Desmascarando”, nos relata o ocorrido entre o desembargador Eduardo Almeida Prado e um agente da Guarda Civil de Santos. A recusa em usar máscara do primeiro cobrada pelo segundo foi mais um daqueles tristes episódios na linha do “Sabe com quem está falando?”. Para intimidar o fiscal, chamado de analfabeto, o desembargador ainda ligou para o secretário de segurança de Santos. Este afirmou depois que não o conhecia pessoalmente.

             Nessa mesma linha, Merval cita a obra do sociólogo Roberto DaMatta, “Carnavais, malandros e heróis”, em que este faz a dissecação da conhecida carteirada.  Ou seja, de alguém que se põe no papel de “otoridade”, com “o” mesmo.  Essa postura torta evidencia a falta de legitimidade no uso de prerrogativas, fora do tempo e do espaço, dadas as circunstâncias, de um desembargador que se acha no direito de afrontar a lei municipal. 

            Na verdade, o mau exemplo vem de cima, do STF, em decisão apertada de 6 a 5, que nos comunicou que nem todos somos iguais perante a lei. E assim revogaram o artigo 5º da constituição, como nos relembrou o articulista J.R. Guzzo. Eu me refiro, no caso, ao princípio da irredutibilidade salarial do servidor público. Afinal, a redução proporcional de salário e jornada mantém no mesmíssimo valor o salário-hora! Pior, impediram, com olho no próprio umbigo, boa parte do ajuste fiscal de estados e municípios, reivindicação unânime de governadores e prefeitos indignados.  Uma boa assessoria de eco-nomistas poderia explicar-lhes o duplo equívoco: a irredutibilidade não seria afetada e o estrago brutal nas contas públicas oriundo da desastrada decisão.   

            E foi assim que me veio à memória um ótimo exemplo, de nossa desco-nhecida história do século 19, envolvendo o cocheiro de Pedro II e o próprio. O fiscal da prefeitura lhe disse que havia estacionado a carruagem em local não permitido. O cocheiro resolveu dar uma carteirada, na mesma toada do desembargador, argumentando que se tratava do coche do imperador. Deu azar. Sabedor do fato, Dom Pedro II o mandou pagar a multa, dizendo-lhe que caberia a ele como chefe de Estado ser o primeiro a dar o exemplo.

            Ainda na mesma época, no andar de cima, merece registro outro exemplo admirável. O então ministro da Justiça, Lafayette Rodrigues Pereira, também presidente do Conselho de Ministros, conhecido como Conselheiro Lafayette, em 1883, enviou uma carta memorável a seu irmão. Simplesmente lhe comunicava que o pleito do pai de ambos não poderia ser deferido por ele enquanto ocupasse aquela posição. Seu espírito de homem público vinha em primeiro lugar, pois ele se achava impedido. Que diferença, não é mesmo!

            A questão maior é o que levou a essa mudança para pior dos homens públicos de então e os de hoje?  As velhas explicações do tipo herança ibérica e patrimonialismo não se encaixam muito bem nesses dois casos, que se passaram em pleno século 19. Temos ainda o testemunho de Ruy Barbosa, já em 1915(!), sobre a queda brutal da qualidade do homem público brasileiro logo no início da república. Afinal, continuamos a ser da mesma cepa original luso-afro-indígena, raiz da nacionalidade. O que houve então?                                   

        Na verdade, vamos bater na velha questão de sempre, que se impõe há mais de século: a falta de monitoramento, fiscalização e punição dos envolvidos nas fraudes e roubalheiras. Poucos anos após a proclamação da república, merece ainda registro o caso específico, mas revelador, de um barão do Império tido como homem íntegro e correto. Aconteceu o seguinte: olhou para um lado e para o outro, para frente e para trás, e se deparou com um clima de negociatas de toda ordem.  Pior: os controles haviam sido desativados.  E foi assim que ele resolveu cair na gandaia de malversação dos dinheiros públicos.

               O dramático no caso brasileiro é que os maus hábitos foram num crescendo diretamente proporcional à falta de controle e fiscalização. Foi bater numa situação esdrúxula que daria destroncamento de cérebro em Marx. Ou seja, ao invés de o governo está a serviço da chamada burguesia, fato denunciado por ele, deu-se o oposto: a burguesia, via sobrecarga tributária, é que está a serviço do governo. (E o povo, obviamente, via impostos indiretos). Foi tão escorchada que deixou de investir, no que foi acompanhada pelo pró-prio setor público. Resumo da ópera: O PIB empacou, e a geração de emprego e renda passou a ser medíocre. Em especial, nas últimas quatro décadas.

              A boa notícia nesse quadro foi a independência do Ministério Público e da Polícia Federal na apuração dos crimes praticados pelo andar de cima. Infelizmente, veio um tanto tarde, na medida em que a lei, de longa data, vinha sendo usada para garantir mordomias e privilégios nos três níveis e esferas de governo. É o velho drama do legal, mas imoral. Situação fácil de ser verificada nos poderes legislativo e no próprio judiciário. O desembargador em questão é beneficiário, provavelmente do auxílio-moradia, dentre outros. E ainda se acha no direto de afrontar o fiscal. E, mais grave ainda, a própria Lei. Pedro II teria ficaria horrorizado. O desembargador acabou pedindo depois desculpas publicamente. No caso dele, conhecedor da Lei, beira o indesculpável.

     

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