O exemplo da suprema corte e o STF
Tenho viva a lembrança de um filme que relatava a mecânica interna que levou a Suprema Corte dos EUA a construir uma decisão unânime a favor da integração racial nas escolas americanas. E ao abandono da antiga doutrina (marota) de “iguais, mas separados”, que dava respaldo secular à manutenção do racismo nas escolas e em locais públicos do país. O resultado não foi, de saída, 9 a 0 a favor da integração, como se poderia pensar.
Foi um processo muito difícil. Começou com um sofrível 5 a 4 a favor, que não chegou ao conhecimento do público na época. Saltou aos olhos dos membros da Corte a fragilidade de uma decisão, que sabiam histórica, com tais números marcados pela falta de firmeza daqueles homens a quem cabia julgar o real fundamento e substância da democracia americana.
Após muita discussão interna entre os juízes, em que foram feitas defesas habilidosas do princípio “iguais, mas separados”, o placar evoluiu para um número mais aceitável: 8 a 1. Aparentemente, o juiz renitente estava sinceramente convencido da sólida base jurídica de seu voto contra a integração. Os demais juízes não aceitaram suas ponderações e partiram para a dura tarefa de convencê-lo a mudar de voto e chegar à unanimidade do 9 a 0, que baniu o racismo das escolas americanas.
Comparemos agora, caro(a) leitor(a), com o que acabou de acontecer no STF, em 24/06/2020, em sua decisão final sobre a redução proporcional de salário e jornada dos servidores públicos da União, estados e municípios. Os senhores ministros resolveram manter a proibição dessa redução proporcional, debatida antes no próprio STF, em que o resultado contra foi de 6 a 4. Desta vez, no julgamento final, com o voto contra do juiz Celso de Mello, que estava ausente na reunião anterior, o placar fechou em 7 a 4, mantendo o princípio da irredutibilidade dos salários dos servidores públicos.
Entre a decisão anterior, de quase um ano atrás, e a atual os ministros do STF não pararam para pensar que estavam indo na direção oposta à da Supre-ma Corte em relação à integração racial nas escolas americanas. Ou seja, lá, os juízes tomaram a decisão histórica de não aceitar a existência de cidadãos de primeira e segunda categoria no país. Aqui, eles acabaram de criar o estranho princípio (ou falta de?) dos “mais iguais” de que nos fala George Orwell em seu famoso livro “A Revolução dos Bichos”, uma crítica devastadora das práticas comunistas, dentre elas a de que as decisões do andar de cima da burocracia comunista são inquestionáveis.
Fomos informados por boa parte dos ministros de que no Brasil existe um grupo de cidadãos intocáveis, imunes a qualquer sacrifício, mesmo em situações dramáticas como a do Covid 19, e um “pequeno” grupo de 90% da população, submetido aos altos e baixos do mercado, e que pode ter salários e jornadas reduzidos proporcionalmente, como já vem ocorrendo em um número significativo de empresas. Optaram pela advocacia em causa própria.
Certamente, haveria que ter bom senso na implementação dessa permissão
para reduzir proporcionalmente salário e jornada no setor público. Aqueles servidores que estão nos hospitais e serviços afins deveriam ter um tratamento diferenciado face à sobrejornada a que estão submetidos. Ganhar mais seria até justificável. Obviamente, não é essa a situação da maioria dos servidores públicos. Mais: o corte necessário de gastos do inchado setor público teria vez.
Não é a primeira vez que o STF tropeça nas próprias pernas a nos lembrar daquela foto do falecido presidente Jânio Quadros com um giro de corpo sobre os pés indo cada um para um lado. Ao que se sabe, os ministros, hoje, se arrependem da decisão equivocada sobre a inconstitucionalidade da cláusula de barreira (ou de desempenho). A rigor, ela não proibia o funcionamento de partidos políticos. Apenas impunha um mínimo de densidade eleitoral para que os partidos tivessem representantes na Câmara Federal. E foi assim que abriram as portas para agremiações sem compromisso com o interesse público.
Mas os desacertos não param por aqui. Ainda me lembro de uma bela palestra do ex-presidente do TST, ministro Ives Gandra Martins Filho, na FIRJAN, sobre a reforma trabalhista então em plena efervescência. Contraria-mente ao coro ensaiado de que os trabalhadores estavam sendo prejudicados, o ministro se colocou a favor da referida reforma, que já chegava tarde. Como eu estava presente, citei a obra do famoso jurista americano Richard Posner, a Análise Econômica do Direito, em que ele abordava a questão relevante do possível conflito entre as leis econômicas e o aparato legal americano. A conclusão de Posner é que não havia desarmonia entre esses dois tipos de lei.
Em seguida, levantei a questão de que, certamente, obra semelhante no Brasil iria elencar uma série de conflitos entre as leis, digamos assim, jurídicas e as econômicas. Estas, se contrariadas a curto e médio prazos, vão se impor a a longo prazo. Os exemplos clássicos são o tabelamento de preços e os aumentos salarias populistas sem base nos ganhos produtividade. Todos sabemos no Brasil que isso resulta em muita inflação, o pior imposto sofrido por quem menos tem condição de suportá-lo nas faixas de um ou dois salários.
Nos últimos meses, tivemos manifestações de extremistas pedindo o fechamento do congresso, do STF e a intervenção militar. Tem sido observada uma saudável reação do País a tais atos. E mesmo de civis com a coragem de dizer aos militares o que nós esperamos deles e não o que eles desejam de nós. Basicamente, que respeitem as instituições e o próprio poder civil e a sociedade que lhes paga os soldos. Afinal, se ditaduras militares resolvessem alguma coisa, a América Latina seria primeiro mundo desde o século 19. Mas isso não significa dizer que estejamos, como povo, satisfeitos com o sistema político falido que temos e nem mesmo com decisões capengas do STF. Debater internamente questões delicadas, fora dos holofotes, como fez a Suprema Corte americana, em muito contribuiria para decisões menos equivocadas do STF.