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  • 24/05/2020 00:01

    Flor. O verbo parido: Poema, o fruto do nosso ventre. Entre para o mundo. No fio da pa-lavra, a Vida. Lavrar o vivido em Poesia. Ser. Travessia no tempo: o ciclo que se completa com o sonho do eterno. Do pó ao pó, uma inquietude chamada existência. O cronômetro disparado na fecundação do óvulo. O corte do cordão umbilical, apenas anuncia a partida. A morte não é o ponto de chegada; mas de outra partida. E a parte ida será lembrada pelas flores plantadas ao longo da caminhada. Nesta aridez do mundo, o Amor é mandacaru. O ser-tão fértil, arado com lágrima e suor. Cacimba dentro de si, “matéria antifísica” produzida pela dor no “Antiuniverso”. O mundo do-eu.

    Fernando Antônio Py de Mello e Silva, acho que escolheu o dia para partir, 21 de maio, “Dia do Profissional de Letras”. O acaso que se faça por merecer o direito de conduzir o destino. O caos que se organize para chegar à perfeição. A diversidade que se equilibra harmonicamente conduz por um raciocínio lógico: – houve um pontapé inicial para deixar esta bola rolando. Mas há quem não goste de brincar de rodas, só porque tem que ser de mãos dadas… Paz para cirandar: “À roda de mim mesmo, rumo à infância,/ persigo a explicação primordial/ da existência secreta que vivi/ e pouco se revela, forma enigmas/ que tento desvendar porém debalde.” Fernando Py, em verso, plantava palavras como tâmaras, que são colhidas pela di(es)gestão do tempo. Por isso, escreveu: “o mundo só existe enquanto vivo”.

    Uma vida a serviço da Literatura. Em 13/06, completaria 85 anos de muitas letras e leituras. Garimpador de livros. Encontramo-nos, algumas vezes, por alguns instantes, entre estantes da vida. A Língua, como Pátria, não estabelece fronteiras entre corpo e alma. Ele foi ponte entre idiomas, traduziu: Proust, Edgar Wallace, Issac Asimov, Marguerite Duras, Balzac, Alexandre Dumas, John Gledson, Henri Verdet, Saul Bellow, Marcel Aymé…

    E, sobre o seu dedicado trabalho como tradutor, afirmou: “Com o tempo, aprendi que traduzir não é alinhar, num idioma, palavras correspondentes às do original a ser traduzido. Para chegar a traduzir Proust, ou melhor, para me atrever a traduzir “À la recherche du temps perdu”, não apenas traduzi vários livros em francês, inglês e espanhol, o que certamente me forneceu tarimba no métier, mas também outros textos do próprio Proust: a miscelânea “Les plaisirs et les jours”, a novela “L’indifférent” e o romance “Jean Santeuil”.

    Em Py, eu via Pessoa, Augusto dos Anjos, Mario de Andrade, Quintana, Carlos Drummond. Deste, ele foi amigo e tinha obras completas autografadas…

    Corpos entregues à Poesia. Há um estágio da vida em que a linguagem já faz parte do metabolismo do Poeta. Py era parte integrante da biblioteca que possuía, com mais de 8.700 volumes, com centenas de livros com dedicatórias para ele. Quem o visitava tinha o prazer de vê-lo naquele universo catalogado por ele, no qual sabia o lugar de cada livro. Havia um zelo proveniente do amor à Arte. Foi nesse ambiente que tive a oportunidade de ver a 1ª edição de “Macunaíma”. O carinho que ele tinha pelo seu acervo refletia a dedicação de um assíduo leitor que mergulha em cada obra lida. Lidâncias… Felizes os que tiveram a honra de ter um livro analisado por ele. Foram mais de 9.200 artigos publicados. Alguns estão reunidos no seu último livro “Raízes, Jornalismo Literário”, lançado em 2019.

    O trabalho de Fernando Py sobre a bibliografia de Drummond é uma referência para quem estuda a obra desse poeta de Itabira que afirmara: “o último dia do tempo/ não é o último dia de tudo.”

    A partida do Py não foi um ponto final. Porém, ficou, além da saudade, a responsabilidade da preservação do acervo dele. Talvez seja a maior biblioteca particular de Petrópolis constituída por obras de cunho especificamente literário. Esse patrimônio deve ser preservado. Há muito carinho reunido pela convivência literária que ele teve com grandes escritores da Literatura Brasileira.

    No poema “Conhecimento da Morte”, Py escreveu: “Quando eu penetrar no antiuniverso/os amigos de verdade sentirão/ e juntos lamentarão a meia voz./ Alguns mais sensíveis chorarão/ sobretudo quando a sós.”

    Caríssimo companheiro de trincheira, as lágrimas são versos do poema saudade. Nessa guerra de mediocridade em que o nosso país está mergulhado, a sua ausência abre um vazio imenso.  Cito aqui mais uma estrofe que destaquei quando li o seu livro “Sentimento da Morte & Poemas Anteriores”:

    “Vida só vale é vivida./ A morte dela faz parte./ Não fracassa quem na vida/ com seu próprio engenho soube/ transformar a vida em arte”.

    A Arte de viver é esculpida pelo amor dedicado ao que se faz, por isso que o tempo não apagará o que você deixou. A sua vida foi um  belo poema dedicado à Literatura.

     

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