Lembrai-vos da talidomida
Países – que não liberaram a cloroquina – como Estados Unidos, Alemanha, França, Reino Unido, Japão detém, juntos, 737 Prêmios Nobel, das mais diversas áreas. O Brasil – onde sobra talento, mas falta financiamento e apoio – não tem nenhum. Nesses países estão os maiores centros de pesquisa do mundo, os mais avançados laboratórios e as maiores indústrias químicas e farmacêuticas. Nenhuma autoridade científica por lá, pelo menos até agora, defende o uso da cloroquina como terapêutica de massa contra a Covid-19. Porque o medicamento pode causar efeitos colaterais perigosos. E porque a ciência tem ritmo próprio, que exige testes e estudos, para evitar danos maiores.
Pouco importa que um prefeito aqui ou o David Uip ali tenham se tratado com cloroquina. As pesquisas feitas até hoje são inconclusivas. A Fiocruz, por exemplo, divulgou há poucos dias estudo em que a cloroquina não fez diferença relevante nem para curas, nem para óbitos. Estudo chinês mostrou baixa eficácia no tratamento com cloroquina. O mesmo ocorreu em experimentos num hospital francês. Os suecos, nesta semana, recuaram de tratamentos com cloroquina, pelos efeitos colaterais. Até há um estudo italiano com resultados favoráveis, mas feito apenas em laboratório e divulgado com o alerta de que em humanos a coisa podia ser diferente, por causa dos efeitos colaterais.
A onda pró-cloroquina se avolumou depois do “estudo” de um polêmico infectologista francês. Foi rejeitado pelos cientistas, por falta de protocolos de metodologia científica, como grupo de controle, por exemplo. No mundo hoje, defendem o uso imediato da cloroquina Donald Trump e Jair Bolsonaro. Trump possui interesses financeiros – embora de pequena monta, como destacou a Forbes – num laboratório fabricante da cloroquina. Bolsonaro parece possuir interesses políticos, infelizmente. Talvez queira se passar por salvador da pátria. A médica em cujo parecer se apoia é conhecida entre seus pares como entusiasta de tratamentos alternativos, com deficiência de base científica. Mandetta segue insistindo na necessidade de comprovação científica, para generalização da prescrição da cloroquina. O Ministério já a admite para casos graves, em que o já presente risco de morte pela doença compensaria os riscos do medicamento. Mas mesmo assim, o Ministério sugere seu uso apenas mediante acordo médico/paciente, inclusive com termo de responsabilidade. Para uso generalizado insiste em conclusões mais confiáveis da comunidade científica.
Bolsonaristas, infelizmente, estão fazendo disso guerra ideológica, com todo aquele fervor característico. Como se houvesse conspiração por detrás do coronavírus para prejudicar o presidente a quem chamam “O Mito”. Cautelas com a cloroquina seriam parte de uma sabotagem a Bolsonaro. Não. Ainda que na emergência a ciência precise se apressar, como está sendo feito, ela tem parâmetros a seguir. Até entendo que seja difícil a quem combateu a ciência e os cientistas, como Bolsonaro, e que conta entre seus seguidores com muita gente que acha que a Terra é plana, entender essas coisas. Mas cabe lembrar. Aqueles países de 737 Prêmios Nobel, ainda não se sentiram seguros para liberar a cloroquina. Aliás, país nenhum, com ou sem Nobel, o fez. Por que, então, nós a partir de sucessos pontuais e por ora irrelevantes cientificamente, do ponto de vista estatístico, devemos liberar, com base na vontade do Presidente?
Acho que todos nós, todos mesmo, bolsonaristas ou não, queremos um remédio (e uma vacina!) que ajude a pôr fim nessa mortandade e angústia que percorrem o mundo. Pode até vir a ser a cloroquina, ou talvez alguma das outras dezenas de drogas que vêm sendo testadas, desde que tudo começou. Mas vamos esperar. Lembrai-vos da Talidomida, cuja liberação apressada a gestantes, sem adequada testagem, causou tanta tragédia e dor.
denilsoncdearaujo.blogspot.com