Duas orelhas e uma boca
A humanidade sempre tem encontro marcado com o imponderável. Assim como a ciência e a religião precisam do mistério para sobreviver, a humanidade sempre se defrontará com uma zona de bruma quando se trata de antever o futuro. Por vezes, mentes mais sensíveis e iluminadas nos avisam daquilo que está por vir, mas não damos ouvidos.
Foi o que aconteceu com o alerta de Bill Gates, em 2014, quando o vírus Ebola surgiu na Guiné. Em pouco tempo, houve 6583 mortes. E poderia ter-se disseminado pelo resto do planeta com força total. Tal não ocorreu, disse Bill Gates, por três razões: (1ª) o trabalho profissional das equipes no combate ao vírus, se deslocando até os locais onde estavam as pessoas infectadas para dar-lhes atendimento; (2ª) a natureza do vírus que não se propagava pelo ar; e (3ª) o vírus não atingiu áreas urbanas com grandes concentrações demográficas.
A lição que Gates tirou do episódio Ebola foi que a humanidade teria que se preparar para criar um sistema global de saúde capaz de atuar em qualquer parte do mundo em caso de necessidade. Sugeriu menores gastos militares sem deixarmos de lançar mão da expertise das forças armadas em situações críticas. Disse mais: “Se começarmos agora, estaremos preparados para a próxima epidemia”. Não foi ouvido.
O coronavírus não é um ilustre desconhecido. Variedades do vírus já eram estudadas faz tempo. Inclusive em evento recente promovido pelo Fórum Econômico Mundial e pela Fundação Bill e Melinda Gates. Os pesquisadores e acadêmicos levantavam os problemas que poderiam surgir para que os burocratas montassem uma proposta de tomada de decisões. A questão maior era: Como governos, empresas e organizações internacionais devem alocar e distribuir suprimentos médicos e equipes de atendimento para quem mais precisa? Essa reunião ocorreu dois meses antes de o novo vírus ser detectado em Wuhan, cidade chinesa com mais de 10 milhões de habitantes. Novamente, ouvidos moucos.
Edgard Schein, criador dos termos cultura organizacional, e professor
da Escola Sloan de Administração do MIT, nos desafia a encarar o futuro no pós-pandemia de modo diferente. É o momento da Liderança sem Ego, título de seu último livro, e nos conclama à indagação humilde, ou seja, de desenvolver nossa capacidade de fazer boas perguntas. Quem procede desse modo sabe que não é o dono da verdade.
Apesar do fato de o mundo ter-se deixado ser pego de surpresa, há que se reconhecer que soluções muito eficazes já são conhecidas sem que tenhamos de imediato os meios para colocá-las em prática. Eu me refiro ao uso sistemático de máscaras e aos testes em massa para separar os infectados dos que não estão com o vírus.
Quanto às máscaras, eu me recordo de uma missão empresarial ao Japão, em 2014, quando observei nas ruas pessoas usando máscaras. Fui informado que elas estavam gripadas e não queriam contaminar outras pessoas. Na atual epidemia, o uso de máscaras é uma da providência essencial para evitar a transmissão do vírus, embora a grande mídia pudesse divulgar bem mais a urgência em utilizá-las.
Quanto a testar toda a população, é um pouco mais complicado, pois não é possível uma solução como a das máscaras, que podem até ser feitas em casa. Os países que adotaram máscaras e testes em massa vêm se saindo bem na atual pandemia. Mas todos os países poderiam estar no mesmo barco seguro se os alertas tivessem sido levados a sério.
A natureza nos agraciou com duas orelhas e uma boca. Seria a síndrome de Rolando Lero, personagem que nunca captava a mensagem?
Gastão Reis Rodrigues Pereira
Empresário e economista