Cineasta Ken Loach lança o filme Você Não Estava Aqui
Por: Estadão Conteúdo
Quando terminou a filmagem de Eu, Daniel Blake (2016), o cineasta Ken Loach, de 83 anos, acreditava que seria seu último trabalho. Seria o encerramento de uma rigorosa carreira, marcada essencialmente pela crítica social e simpatia pelos desvalidos. Mas, durante a pesquisa realizada para esse longa, ele e seu fiel roteirista Paul Laverty enveredaram por um ramo obscuro da sociedade: o da selva do livre mercado, em que as pessoas ganham por trabalho executado, geralmente como motoristas de aplicativos ou entregadores de mercadorias.
Nascia ali a ideia para Você Não Estava Aqui, filme que causou comoção no Festival de Cannes e estreia nesta quinta-feira, 27, em São Paulo. O longa acompanha Abbie e Ricky, casal apaixonado e esperançoso de que o trabalho independente possa resolver seus problemas financeiros – após a crise de 2008, eles sofrem a ameaça de perder a casa, que está hipotecada. Ricky, então, compra uma pequena van para trabalhar como motorista de entregas, crente que vai faturar um bom dinheiro.
O que ele não imagina é entrar em um sistema que exige longas jornadas, quase sem descanso (é obrigado a urinar em uma garrafa) e sem nenhuma garantia social. A rotina é tão alucinante que só consegue falar com os filhos por telefone. “Se ficar doente ou tiver um problema familiar, não recebe nada”, comenta Loach, em entrevista por telefone ao jornal O Estado de S. Paulo, na manhã desta terça-feira, 25. “É um novo tipo de exploração, a chamada ‘gig economy’, que nos incentivou a rodar Você Não Estava Aqui.”
O Dicionário Cambridge diz que “gig economy é uma forma de trabalho baseada em pessoas que têm empregos temporários ou fazem atividades de trabalho freelancer, pagas separadamente, em vez de trabalhar para um empregador fixo”. Ou seja, o vilão não é mais uma instituição ou um governo, mas os algoritmos que aceleram o trabalho dos entregadores a fim de oferecer conforto e rapidez a quem paga pelo serviço. Sobre o assunto, Loach respondeu a essas questões.
O que o levou a colocar a “gig economy” como tema central do filme?
Quando filmávamos Eu, Daniel Blake, percebemos, Paul e eu, que havia uma extensão da forma de atividade dos trabalhadores pobres, ou seja, com a degradação social, muitos foram obrigados a trocar a segurança de um emprego com horário regular, férias, seguro doença e outras vantagens por uma atividade sem nenhuma segurança e tampouco garantia de estabilidade financeira. Isso provocava um estresse que essas pessoas levavam para casa, agravando ainda mais a situação porque, em público, se mantém uma postura; uma vez em casa, a pessoa entra em colapso total, não é flexível com a família.
O senhor diria que esse é um problema novo, ou seria algum antigo, mas com nova feição?
O problema é antigo, mas ganha nova feição por ser provocado pela tecnologia moderna. A exploração ganhou novos meios no momento em que a tecnologia permitiu, por meio de aparelhos celulares, que o comprador de algum produto saiba onde exatamente está o carro do entregador e quando exatamente sua compra vai chegar. Assim, o entregador tem de correr sérios riscos para cumprir com o prometido. A exploração é antiga, apenas a tecnologia é nova.
Foi preciso fazer muita pesquisa para o filme?
(O roteirista) Paul (Laverty) fez a maior parte da pesquisa, depois que conhecemos algumas pessoas. Não foi fácil, pois, por temor, os motoristas não queriam falar para não arriscar seus empregos. Também não foi fácil visitar os depósitos, mas tivemos a sorte de conhecer um homem, que era gerente de um depósito e que nos deu conselhos valiosos sobre como construir o nosso depósito. Conseguimos contratar ex-motoristas, que aparecem no filme e sabiam exatamente como funcionava a rotina estressante e as pressões que seus colegas ainda passam.
Foi o que mais o impressionou nessa pesquisa?
Sim, descobrimos pessoas vivendo situações muito complicadas. É surpreendente a quantidade de horas que esses trabalhadores precisam empregar para garantir uma vida decente, ainda que sob muita insegurança. Pense bem, o risco é inteiramente deles porque trabalham por conta própria. Qualquer um pode perder muito dinheiro rapidamente.
O senhor acredita que o cinema, de alguma forma, pode ajudar a mudar os problemas?
Sou um contador de histórias muito próximas das pessoas. Acredito que o cinema tem a força de dar destaque a determinados problemas e provocar questionamentos. Diferente do que normalmente acontece em Hollywood – lá, vemos belas pessoas, que viajam, frequentam restaurantes sofisticados, mas não sabemos de onde tiram dinheiro para isso (risos). É um mundo de sonhos, mas prefiro longas que compartilham responsabilidades com o público
E o que dizer do Brexit?
O acordo com a União Europeia era especialmente econômico. Com a separação, os trabalhadores do Reino Unido serão mais explorados dentro do próprio Reino Unido, com a ajuda do primeiro-ministro (Boris Johnson).