• Falsas prioridades em tempos turbulentos

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  • 20/set 08:00
    Por Gastão Reis

    Quando um país não consegue ver com clareza suas prioridades, nada melhor do que adotar uma visão de longo prazo para colocar as coisas em seus devidos lugares. Um livro de Francis Fukuyama nos fornece um arcabouço para entender a encrenca em que estamos metidos. O título e o subtítulo deixam claro a que veio: “FICANDO PARA TRÁS – Explicando a crescente distância entre América Latina e Estados Unidos”. Aparentemente, o livro não mereceu a devida atenção pelo fato de seu autor ter se tornado conhecido por seu outro livro sobre o fim da História, que levantou polêmica e críticas.

    Mas, aqui, o que importa é o retrato desalentador do primeiro livro citado. Ele traça, de modo fundamentado com estatísticas preocupantes, o que vem acontecendo com a região. E, pelo jeito, sem que seus dirigentes tenham se da-do conta. Pior: sem buscarem um ponto de inflexão para um futuro promissor. Um dos dados mais importantes é a relação entre a América Latina/EUA em termos de renda real per capita desde 1700 até o ano 2000. Vai de 0,99, em que estávamos no mesmo patamar, e mergulhamos para 0,21 no ano de 2000. Ou seja, nossa renda real per capita passou a ser 1/5 da americana.

    Em 2024, a renda per capita em dólares americanos do Brasil e dos EUA foram, respectivamente, de US$ 9.526,18 e US$ 66.683,00, ou seja, nós caímos de 1/5 para menos de 1/6 (0,14 contra 0,21 em 2000) com o fosso aumentando. Esta situação alarmante não parece ser nossa prioridade. Outra consequência perversa é que estamos perdendo posição relativa em relação a nossos vizinhos latino-americanos com a cabeça no lugar, como o Chile. E isso sem comparar com os países europeus.

    Nos últimos anos, nosso foco tem sido a defesa da democracia como se ela estivesse passando por riscos reais e não imaginários, como a tentativa do golpe que não houve tramado por Bolsonaro.  E as razões qualitativas são bastante sólidas. O ex-presidente sabia que ele não poderia contar com as Forças Armadas, desde sempre, por seu histórico de militar indisciplinado e opção por ser político. A outra foi o fato de que não houve golpe, demonstrado pelo ministro Luiz Fux no seu longo voto de 14 horas, em que deixou patente as diversas arbitrariedades praticadas pelo STF, em especial pelo ministro Alexandre de Moraes, antes e depois do julgamento dos oito acusados.

    Vejamos agora o que seria a defesa de uma real democracia. Lincoln, o famoso e respeitado presidente americano, deixou na História uma bela definição. Era o governo do povo, pelo povo e para o povo. Como sua definição inclui o ‘pelo povo’, ele respaldava a necessidade de os representados terem controle de seus representantes, inclusive entre as eleições. Isto requer incluir na legislação eleitoral o voto distrital puro, ou equivalente, para que vereado-res, deputados estaduais e federais prestassem contas aos seus eleitores, todo mês, em seus distritos eleitorais. O Brasil não dispõe deste dispositivo. Em outras palavras, o povo só pia a cada quatro (ou dois) anos nas eleições.

    Mais grave ainda é o fato de não termos o recall, ou seja, a possibilidade de os eleitores revogarem o mandato de seus representantes nos três níveis de governo entre as eleições. No caso americano, o recall é aplicado ao final de dois anos dos quatro dos mandatos legislativos. Se não for reconfirmado, ele é substituído por outro representante daquele distrito eleitoral. Em outros países, a legislação é mais dura ainda, permitindo sua substituição por outro em qualquer momento a depender de ato inaceitável que venha a praticar na avaliação de seus representados em seu distrito eleitoral.                         

    Resumindo a ópera. O Brasil não dispõe de nenhum destes dois poderosos instrumentos de controle de seus representantes por seus representados. Logo, estamos muito longe de ser uma democracia real, como é alardeado dia sim e outro também pela grande mídia. Eleitores americanos e europeus ficariam chocados quando soubessem desta dupla falha de nossa legislação eleitoral.

    Esta linha de raciocínio explica, claramente, a profunda decepção do eleitor brasileiro diante dos políticos e de seus partidos. Fica evidente que são  grupos de interesse sem maior compromisso com o bem comum. E que essa decepção vai continuar porque estas questões cruciais para uma democracia  não são sequer debatidas. Quando tenho a oportunidade de explicar a ausência destes dois mecanismos em palestras, eu me surpreendo com o fato de as pessoas, até com curso superior, não terem noção de que essa solução existe e é corriqueira em países cuja democracia funciona para valer.

    Em meio a tudo isso, caçamos fantasmas para entender por que o Brasil tem um crescimento tão pífio. Simples. É preciso elevar nossa taxa de investimento para um percentual entre 23 e 25% do PIB, coisa que não acon-tece faz tempo demais. Enquanto não reorganizarmos as finanças públicas via corte de gastos, vamos marcar passo e perder posição relativa por subinvestir. É premente a necessidade de tornar o setor público mais eficiente e eficaz nos três níveis. Obviamente, nada disso deve ser esperado do (des)goveno Lula, que só sabe pensar em mais gastos como realização de concursos para contratar novos funcionários públicos ao invés de torná-los mais eficientes.

    Para fechar o ciclo de desatinos, não respeitamos o critério do voto de cada homem (ou mulher) ter o mesmo peso. Trocado em miúdos, isso significa que um candidato a deputado federal por São Paulo precisa mais de 100 mil votos para se eleger ao passo que em Roraima bastariam 20 mil. É uma herança da ditadura militar que, em certo período, para ter votos, fortaleceu o peso do Norte e Nordeste em detrimento das demais regiões do País.    

    Em suma, a democracia brasileira está longe de preencher os requisitos básicos de uma democracia que realmente atenda ao ‘para o povo’ na definição de Lincoln. É uma democracia para eles, o andar de cima, com desigualdade brutal e permanente ao jeito da cara pouco inclusiva da república brasileira.

    **Sobre o autor: Gastão Reis é economista, palestrante e escritor.

    **Contato: gastaoreis2@gmail.com

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