• O caso Bolsonaro: a nós cabe a justiça, a Deus a vingança

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  • 21/set 08:00
    Por Leonardo Boff

    De meu saudoso pai, mestre de escola, com um método semelhante ao de Paulo Freire, educava os alunos e alunas de Planalto-Concórdia-SC, sempre com esse conselho: “nunca se vinguem; a vingança pertence a Deus; e confiem sempre na divina Providência”. Esse ensinamento permance como legado imorredouro de seus alunos, suas alunas e de seus onze filhos. As Escrituras sempre afirmam: “A Deus cabe a vingança”. É o juízo derradeiro de quem, de fato, definitivamente julga o nosso projeto de vida. Não nos cabe julgar as pessoas, pois possuem algo do mistério que só Deus penetra. A nós cabe julgar os atos concretos, pois estes têm objetividade e podem ser ajuizados. Isso se aplica ao caso rumoroso do julgamento da organização criminosa que tramou um golpe de Estado tendo como cabeça o ex-presidente Jair Messias Bolsonaro. Foram processados e julgados. Não houve espírito de vingança por parte dos magistrados, mas a aplicação estrita das leis e da Constituição: 27 anos e três meses de prisão em regime fechado. Fora condenado apenas por 5 crimes, objetivamente comprovados, entre tantos que cometeu.

    Por mais que procuremos, não deixou legado positivo nenhum. Em seu governo irrompeu o império da maldade oficializada e popularizada. Seu lema foi claramente expresso numa reunião com o grupo ultra-conservador dos EUA, o Tea-Party: “não pretendo construir nada, mas destruir tudo para recomeçar outra história”. E de fato assim fez, destruiu tudo o que pôde sem nada construir de positivo em favor do povo.

    Diria que as várias sombras que maculam nossa história ganharam com suas práticas malévolas, plena densidade: (1) a mácula do genocídio indígena: deixou morrer centenas de yanomami, entre outros; (2) a nódoa do escravismo de 350 anos: suas palavras foram: ”pessoas negras foram legalmente escravizadas em função de sua massa corporal”; os quilombolas “não servem para nada, nem para procriador servem”; (3) a mancha do colonialismo: o Brasil que Bolsonaro venera é o Brasil colônia, subserviente e submisso, que bate continência para a bandeira americana, que exalta a tortura e o fuzilamento de inimigos, que descuidou totalmente de nosso maior patrimônio natural, a Amazônia e o Pantanal; (4) o estigma da ocupação do Estado pela classe dominante: Bolsonaro, não sabendo administrar nada, entregou à Câmara Legislativa funções que seriam do Executivo, como a gestão do Orçamento; não apenas deu rédeas à acumulação das classes abastadas no campo e na cidade como militarizou grande parte dos aparatos de Estado; (5) ignominiosos foram os atos de negacionismo da vacina contra o Covid-19, tornando-se responsável por 430 mil mortes evitáveis dos 716.626 vitimados; ofendeu as vítimas imitando a morte de uma delas, com boca aberta em busca, desesperada, de oxigênio; considerou a pandemia “uma gripezinha” e tratava a dor dos que perdiam entes queridos como “mero mimimi”; debochou dos familiares que não podiam acompanhar seus mortos aos cemitérios improvisados; (6) teve um desprezo soberano dos pobres, ”só têm uma utilidade, a de ter o título de eleitor e o diploma de burro… não prestam para nada, na sua grande maioria não servem para futuro de nosso país”; (7) mostrou-se inimigo da ciência, da educação, dos direitos humanos, da pesquisa científica, regredindo o país aos tempos anteriores ao iluminismo; (8) atos dos mais perversos foram aqueles que deseducaram o povo, com palavrões de baixo calão, com manifesto ódio aos LGBTQ+1 e com clara misoginia, a ponto de se envergonhar por ter tido uma filha, “fruto de uma fraquejada”; difundiu fake news e uma onda de ódio que dividiu famílias e tornou tóxicas as relações sociais; (9) cometeu explícita manipulação do discurso religioso, contradizendo a mensagem religiosa por suas atitudes verdadeiramente farisaicas e para fins diretamente eleitoreiros, o que contradiz a natureza laica do Estado; (10) por fim, algo inaudito e de suma atrocidade em nossa história de república, foi o propósito de assassinar o ministro do STF Alexandre de Moraes, de envenenar o presidente Lula e de seu vice, Geraldo Alckmin.  

    Estes atos merecem a repulsa de uma mente minimamente humana e sensível. É aqui que entra a justiça que julga consoante o Contrato Social firmado pela Constituição de 1988 e pela leis do Código Penal. Sei que o conceito de justiça, desde os clássicos gregos com Sócrates, Platão e Aristóteles até aos modernos John Rowls e MacIntyre, é carregado de discussões. Não cabe neste lugar assumir uma de suas versões ou definições. Para o caso de Bolsonaro basta-nos a aplicação da Constituição e do Código Penal que definem como crimes os atos que por ele e pela organização criminosa perpetraram. Cabe enfatizar que não se trata de uma questão de cálculo, mas de princípio, de pura e simples aplicação das penas penais.

    A Constitução de 1988 é límpida quando define a

    Abolição violenta do Estado Democrático de Direito

    Art. 359-L. Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais:

    Golpe de Estado

    Art. 359-M. Tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído”.

    O veredito da Primeira Turma do STF foi clara face aos atos praticados por Jair Messias Bolsonaro e pela organização criminosa.

    Tudo isso foi organizado e planejado como tentativa frustrada que, de por si, já constitui crime. A sentença foi adequada aos crimes e por isso justa:

    Condeno o réu JAIR MESSIAS BOLSONARO pelos crimes de organização criminosa armada, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, dano contra o patrimônio da União e deterioração de patrimônio tombado às penas de 27 e 3 meses de reclusão” (Supremo Tribunal Federal, 11/09/2025).

    Pela primeira vez em nossa história de golpes e contragolpes que se levou às barras dos tribunais, um ex-presidente, vários militares de alta patente e outros cúmplices.

    Como foi comentado por jornais estrangeiros, especialmente dos EUA: a democracia brasileira e suas instituições se mostraram mais sólidas daquela norte-americana, sempre tida como realidade de referência.

    Ficou claro para a comunidade jurídica e pela mais alta corte: ”Não pode ter indulto, não pode ter anistia, não pode ter perdão judicial para alguém que tentou derrubar a democracia”. O país deu um salto de qualidade rumo à sua solidez e à sua maturidade. A grande maioria da população deu um profundo suspiro de alívio. Em fim fez-se justiça!

    **Sobre o autor: Leonardo Boff, teólogo, filósofo e escritor, publicou: “Brasil: concluir a refundação ou prolongar a dependência“, Vozes, 2018.

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