Lula descreve crise da ordem global em artigo sem mencionar papel de Rússia e China
Em meio à crise deflagrada com a imposição de tarifas ao Brasil pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) assinou um artigo publicado por alguns dos principais jornais do mundo, como Le Monde (França), El País (Espanha), The Guardian (Reino Unido), Corriere della Sera (Itália), Yomiuri Shimbun (Japão), China Daily (China), Clarín (Argentina) e La Jornada (México), além da revista Der Spiegel (Alemanha).
Intitulado “Não há alternativa ao multilateralismo”, o texto expõe a posição do Brasil diante do que se chama de “crise” da ordem internacional. Sem citar o tarifaço de Trump, Lula disse que a Organização Mundial do Comércio (OMC) está “esvaziada” e que o sistema multilateral no comércio está ameaçado pela “lei do mais forte”.
Segundo analistas ouvidos pelo Estadão, o texto deixa de citar os papéis desempenhados por Rússia e China no redesenho das forças internacionais, ainda que de fato haja um esgotamento dos sistemas multilaterais de comércio e diplomacia.
No artigo (Leia a íntegra abaixo), que segundo fontes do governo reflete as concepções da equipe do assessor de assuntos internacionais Celso Amorim, o multilateralismo está em crise porque a ordem global inaugurada com o fim da Segunda Guerra Mundial não corresponde às “novas forças” e aos “novos desafios” que surgiram nas últimas décadas.
“O mundo de hoje é muito diferente do de 1945. Novas forças emergiram e novos desafios se impuseram. Se as organizações internacionais parecem ineficazes, é porque sua estrutura não reflete a atualidade”, disse Lula no artigo. “A solução para a crise do multilateralismo é refundá-lo sobre bases mais justas e inclusivas”.
‘Aliviada’ para Moscou e Pequim
O internacionalista Vinicius Rodrigues Vieira, professor de Economia e Relações Internacionais na Fundação Armando Alvares Penteado (Faap), avalia que o artigo deveria ser mais incisivo com as potências não ocidentais, como é o caso de Moscou e Pequim, uma vez que a ordem internacional pós-1945, criticada pelo artigo, inclui ambos como membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU.
“O governo, talvez, pudesse ter sido mais incisivo na crítica às grandes potências, que não são apenas os países do Norte Global”, diz. “Seria desejável que houvesse uma nomeação (a Rússia e China), dar ‘nome aos bois’, assim como Lula fez ao mencionar e apontar o dedo pro Norte Global.”
Ainda para Vinicius Vieira, ao evitar as críticas contra Rússia e China, Lula perdeu a oportunidade de tratar sobre duas potências que não possuem interesse em reformar o multilateralismo, tal como pleiteado pelo Brasil.
“É importante dizer que, hoje, o próprio multilateralismo não é interessante para China e Rússia, porque eles preferem lidar, pelo menos no caso de questões cruciais, diretamente com os Estados Unidos”, acrescenta o professor. “Se é para reformar o multilateralismo apenas expondo as hipocrisias do Ocidente, o Brasil não pode reclamar de ser entendido como linha auxiliar de Rússia e China no cenário global”.
Desconexão entre discurso e prática
Para Vitelio Brustolin, professor na Universidade Columbia e na Universidade Federal Fluminense (UFF), o artigo publicado por Lula expõe um “diagnóstico legítimo sobre a crise do sistema internacional, mas revela uma profunda desconexão entre discurso e prática” do petista.
Brustolin avalia que, ao adotar posições dúbias sobre regimes autoritários, como a Rússia, Lula compromete a autoridade do Brasil para reivindicar uma nova ordem global. “Lula lamentou a ausência de (Vladimir) Putin em eventos como as Cúpulas do Brics na África do Sul e no Brasil, mesmo sabendo que Putin tem um mandado de prisão no Tribunal Penal Internacional (TPI) por sequestrar mais de 20 mil crianças ucranianas. O TPI é parte do multilateralismo que Lula lamenta estar desmoronando”, disse o professor.
Segundo Pedro Brites, professor de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV), o tom adotado pelo artigo é passível de críticas, mas buscou mediar acenos ao Sul e ao Norte global, em uma “tentativa de calcular perdas e danos”. Para o professor da FGV, o tom do texto integra uma estratégia de fazer do Brasil um interlocutor possível aos países do Sul Global.
“Há uma tentativa de ‘temperar’, dando alguns acenos para o Norte Global, como a defesa do multilateralismo e do livre comércio, mas também dando sinais para o Sul Global, à medida que não é tão direto na crítica à Rússia”, disse Brites.
Já o ex-embaixador do Brasil no Reino Unido e nos Estados Unidos Rubens Barbosa, o texto é coerente com a política externa brasileira e vai ao encontro dos esforços empreendidos pela política externa de Lula em encontros como o G-20 e a Cúpula do Brics. O ex-embaixador diz também que o artigo propõe “uma reflexão crítica” sobre a ordem global atual.
Leia a íntegra do artigo de Lula publicado na imprensa internacional:
O ano de 2025 deveria ser um momento de celebração dedicado às oito décadas de existência da Organização das Nações Unidas (ONU). Mas pode entrar para a história como o ano em que a ordem internacional construída a partir de 1945 desmoronou.
As rachaduras já estavam visíveis. Desde a invasão do Iraque e do Afeganistão, a intervenção na Líbia e a guerra na Ucrânia, alguns membros permanentes do Conselho de Segurança banalizaram o uso ilegal da força. A omissão frente ao genocídio em Gaza é a negação dos valores mais basilares da humanidade. A incapacidade de superar diferenças fomenta nova escalada da violência no Oriente Médio, cujo capítulo mais recente inclui o ataque ao Irã.
A lei do mais forte também ameaça o sistema multilateral de comércio. Tarifaços desorganizam cadeias de valor e lançam a economia mundial em uma espiral de preços altos e estagnação. A Organização Mundial do Comércio foi esvaziada e ninguém se recorda da Rodada de Desenvolvimento de Doha.
O colapso financeiro de 2008 evidenciou o fracasso da globalização neoliberal, mas o mundo permaneceu preso ao receituário da austeridade. A opção de socorrer super-ricos e grandes corporações às custas de cidadãos comuns e pequenos negócios aprofundou desigualdades. Nos últimos 10 anos, os US$ 33,9 trilhões acumulados pelo 1% mais rico do planeta são equivalentes a 22 vezes os recursos necessários para erradicar a pobreza no mundo.
O estrangulamento da capacidade de ação do Estado redundou no descrédito das instituições. A insatisfação tornou-se terreno fértil para as narrativas extremistas que ameaçam a democracia e fomentam o ódio como projeto político.
Muitos países cortaram programas de cooperação em vez de redobrar esforços para implementar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável até 2030. Os recursos são insuficientes, seu custo é elevado, o acesso é burocrático e as condições impostas não respeitam as realidades locais.
Não se trata de fazer caridade, mas de corrigir disparidades que têm raízes em séculos de exploração, ingerência e violência contra povos da América Latina e do Caribe, da África e da Ásia. Em um mundo com um PIB combinado de mais de 100 trilhões de dólares, é inaceitável que mais de 700 milhões de pessoas continuem passando fome e vivam sem eletricidade e água.
Os países ricos são os maiores responsáveis históricos pelas emissões de carbono, mas serão os mais pobres quem mais sofrerão com a mudança do clima. O ano de 2024 foi o mais quente da história, mostrando que a realidade está se movendo mais rápido do que o Acordo de Paris. As obrigações vinculantes do Protocolo de Quioto foram substituídas por compromissos voluntários e as promessas de financiamento assumidas na COP15 de Copenhague, que prenunciavam cem bilhões de dólares anuais, nunca se concretizaram. O recente aumento de gastos militares anunciado pela OTAN torna essa possibilidade ainda mais remota.
Os ataques às instituições internacionais ignoram os benefícios concretos trazidos pelo sistema multilateral à vida das pessoas. Se hoje a varíola está erradicada, a camada de ozônio está preservada e os direitos dos trabalhadores ainda estão assegurados em boa parte do mundo, é graças ao esforço dessas instituições.
Em tempos de crescente polarização, expressões como “desglobalização” se tornaram corriqueiras. Mas é impossível “desplanetizar” nossa vida em comum. Não existem muros altos o bastante para manter ilhas de paz e prosperidade cercadas de violência e miséria.
O mundo de hoje é muito diferente do de 1945. Novas forças emergiram e novos desafios se impuseram. Se as organizações internacionais parecem ineficazes, é porque sua estrutura não reflete a atualidade. Ações unilaterais e excludentes são agravadas pelo vácuo de liderança coletiva. A solução para a crise do multilateralismo não é abandoná-lo, mas refundá-lo sobre bases mais justas e inclusivas.
É este entendimento que o Brasil – cuja vocação sempre será a de contribuir pela colaboração entre as nações – mostrou na presidência no G20, no ano passado, e segue mostrando nas presidências do BRICS e da COP30, neste ano: o de que é possível encontrar convergências mesmo em cenários adversos.
É urgente insistir na diplomacia e refundar as estruturas de um verdadeiro multilateralismo, capaz de atender aos clamores de uma humanidade que teme pelo seu futuro. Apenas assim deixaremos de assistir, passivos, ao aumento da desigualdade, à insensatez das guerras e à própria destruição de nosso planeta.