
Saúde Mental: Vamos falar sobre isso?
“Sai desse corpo que não te pertence!”
Ao nos acostumarmos com um corpo que não nos pertence, ele passa a nos pertencer e, por mais que isso nos acarrete danos, precisamos ser respeitados por nossas escolhas.
O respeito às diferenças individuais e à diversidade é um marco discursivo importante de nossa época, mas tem sido perversamente utilizado por alguns segmentos do marketing alimentar para induzir as pessoas com problemas de sobrepeso a aceitarem seus corpos, ainda que isso lhes cause algum problema. Desse modo, as pessoas não se questionam mais sobre como suas escolhas alimentares podem interferir na sua saúde. Aliado a esse discurso de “aceitação dos corpos”, a indústria alimentícia vem dominando o mercado e se aprimorando nos disfarces, vendendo produtos supostamente “saudáveis”, com zero açúcar, zero lactose dentre outros apelos. Além disso, sofisticaram os engodos em torno dos produtos alimentícios ultraprocessados tornando-os cada vez mais ultrapalatáveis, um dos fatores geradores de compulsões. As prateleiras dos supermercados estão abarrotadas desses produtos modificados que contêm aditivos químicos, conservantes e outros ingredientes não utilizados na cozinha caseira. Tais ítens são ricos em conservantes, emulsificantes, açúcares, ou substâncias químicas inflamatórias que potencializam o sabor doce, sal e gorduras.
O marketing da inclusão das diferenças valoriza um corpo em sobrepeso associando-o a uma estética corporal libertária mas que, muitas vezes, gera sofrimento e danos à saúde do sujeito. Algo similar aconteceu com os fumantes que costumavam ter suas imagens associadas à intelectualidade, à liberdade de expressão, à aventura, à criação artística, conferindo-lhes até certo charme e beleza. Nesse sentido, o vício alimentar segue um padrão semelhante ao dos vícios a tabaco e álcool.
Esse é um assunto muito complexo e controverso para se tratar em um único artigo. Não pretendo discorrer detalhadamente sobre esse tema nesse momento, mas sinalizar que essa conexão entre o estilo alimentar e o adoecimento físico e psíquico existe e não é apenas uma coincidência, afinal, o primeiro “objeto” de saciedade da fome, o seio materno, traz inúmeras referências ao modo como cada um de nós foi alimentado e acalentado por meio dos cuidados essenciais para nossa sobrevivência.
Uma vez em análise, o sujeito faz uma retomada de muitas situações traumáticas que evocam sentimentos de abandono pelo amor das figuras parentais ou de seus representantes no seio familiar. Em função disso, muitas pessoas atribuem seus vícios alimentares, a tabaco, a álcool e a outras drogas a certas situações de abandono, mas as atribuem também a outros momentos em que a comida (ou até o álcool e o cigarro) era justamente o maior elo de ligação e de afetividade na família ou em determinados grupos. Seja pelo excesso ou pela escassez, o sujeito se fixa a um gozo através de certo estilo alimentar para se sentir melhor e mais incluído no amor do Outro.
A sensação de alívio após comer uma caixa de bombom ou um pote de sorvete é descrita por muitos pacientes como análoga a uma sensação de extremo prazer, funcionando como uma espécie de anestésico para suas dores psíquicas, relatos muito parecidos com os de adictos a álcool e drogas.
O tratamento psicanalítico visa a levar o sujeito a falar sobre seus sofrimentos, através da livre associação de suas palavras, convocando-o a se haver com suas escolhas. Precisamente por isso, uma vez em análise, o sujeito já não consegue mais se contentar com o peso de seus excessos que ficam impressos em seu corpo e em sua mente, como um texto monolítico escrito pelo Outro. Um texto que o sujeito deverá tomar para si, tornando-o pessoal e intransferível, de tal modo que não pode ser traduzido pelos outros, pelo senso comum ou por construções puramente racionais.
Emaranhado numa teia de associações de palavras e recordações, o sujeito, ao endereçar seu sofrimento ao analista, consegue se escutar no momento em que é escutado, até o instante em que algo se desenrola e o texto truncado de sua história vai se esclarecendo. Uma vez que já não ignora mais o seu desejo de saber sobre a causalidade psíquica de seus sofrimentos, o sujeito se apresenta como alguém que quer falar mais e cada vez melhor sobre seus sintomas, sobre suas inibições e angústias. Ao analista cabe escutar, pontuar e fazer com que o sujeito se escute, convocando-o a esclarecer e a desenrolar os pontos que ainda se embolam entre si.
Felizmente, um corpo também é um texto em construção que pode ser reeditado e ter sua história transcrita e recriada pelo próprio sujeito.
Transcriar-se como um poema autoral, eis o trabalho de uma análise!
Ao não se apresentar mais como um texto truncado e mal escrito, o sujeito segue se reescrevendo como um poema autoral, inscrito em seu próprio corpo, do seu jeito e, por isso mesmo, deve ser respeitado por suas escolhas. Os efeitos dessa tessitura são contínuos e seguem se desdobrando e se potencializando ao longo do tempo.
O desejo de saber leva o sujeito a abrir mão da paixão da ignorância. Abre-lhe a mente, a escuta, os caminhos, as portas e também os olhos, de tal modo que o sujeito já não consegue mais acreditar em contos da carochinha ou em remédios milagrosos, nem tampouco engolir qualquer coisa sem antes ler o rótulo daquilo que lhe vendem como um sabor irresistível.
O trabalho em torno do desejo de saber continuará sendo feito, resultando, em alguns casos, em um novo desejo que Lacan situará como “desejo de analista” que, por reconhecer em si os efeitos transformadores resultantes de sua análise pessoal, também desejará provocar em outros sujeitos o desejo de saber.
Não há milagres. É importante dizer que não há corpos perfeitos, apenas sujeitos despertos. Portanto, não há receitas prontas ou infalíveis. Cada um tem o seu tempo de despertar e de decidir se irá trilhar um novo caminho. Uma vez advertido sobre o seu modo de gozo, o sujeito poderá escolher melhor os objetos através dos quais se autorizará a gozar da vida. Se não há milagres, tampouco há santificação, o sujeito apenas se livra de sua debilidade, podendo escolher melhor como gozar. Seja em que momento for, o despertar de um sujeito adoecido de seu sintoma só acontece porque o trabalho em torno dos furos no saber nunca se esgota, deixando espaços livres para um novo devir. Também não há garantias de que tudo transcorrerá sem haver novos desafios. Por isso seguimos em frente, apostando nos efeitos poéticos de uma análise, abrindo mão de nossas ignorâncias, deixando de nos empanturrar de ilusões.
Leiam o rótulo!
“Seu corpo, suas regras
meu corpo, minhas regras
nossos corpos, nossas tréguas
arre, égua!”
(vms)
**Sobre a autora: Vanisa Moret Santos é Psicanalista, professora e coordenadora do Curso de Especialização em Psicologia Clínica da PUC-RJ, membro do Fórum do Campo Lacaniano-RJ, poeta, autora de livros e artigos sobre a clínica psicanalítica e também sobre as conexões da psicanálise com a literatura, as artes e as atualidades.
**Instagram: @vanisamoretsantos