• Documentário sobre tragédia aérea que matou 199 abre debate sobre Congonhas: ‘Uma metáfora’

  • 23/abr 10:31
    Por Laysa Zanetti / Estadão

    O cineasta Angelo Defanti (O Clube dos Anjos, Verissimo) começou a pensar no que seria sua nova série documental quando errou o horário de um voo e chegou com duas horas de antecedência ao Aeroporto de Congonhas, em São Paulo, em 2016. Para aproveitar o tempo, ele acabou indo visitar o Memorial 17 de Julho, erguido em homenagem às vítimas do acidente do voo 3054, da TAM, em 2007, e encontrou uma situação de completo abandono.

    “O Memorial estava numa situação deplorável que hoje só piorou. Aquilo ali me pareceu uma metáfora de um acidente que eu, como brasileiro, também tinha vivido grudado na televisão quando ele aconteceu em horário nobre”, recorda, em entrevista ao Estadão. “Desde quando tive essa centelha, comecei a pesquisar e vi que era um buraco quase sem fundo.”

    Foi a partir deste interesse que nasceu Congonhas: Tragédia Anunciada, série em três capítulos que chega nesta quarta, 23, à Netflix. O documentário, como muitos que resgatam histórias de tragédias marcantes, traz relatos de familiares de vítimas e a longa busca por algum tipo de resposta ou responsabilização. Mas o diretor explica que há um diferencial.

    “Nessa máxima da aviação de que um acidente nunca é causado por um único fator, e sim uma série de fatores que, em cadeia, colaboram e resultam para um acidente, eu fui entendendo também que a cauda do acidente de Congonhas, era muito longa, longuíssima, muito mais do que outros acidentes”, opina.

    O acidente ocorreu em 17 de julho de 2007, quando o voo TAM 3054 partiu do Aeroporto Internacional de Porto Alegre rumo a Congonhas. Durante o pouso, a aeronave não conseguiu frear e acabou escorregando para além dos limites da pista, planando sobre a Avenida Washington Luís e colidindo com um prédio de cargas da companhia aérea. É o acidente aéreo com mais mortes da história da aviação brasileira, com 199 vítimas.

    Para revisitá-lo, Defanti traça uma rota que passa tanto pela dor dos familiares de vítimas quanto pela burocrática investigação que engloba órgãos de regulamentação e um momento de caos instaurado. Afinal, o País estava no meio do chamado apagão aéreo, uma intensa crise no setor instaurada pelo acidente do voo Gol 1907, de 2006. Atrasos sistemáticos nos voos, problemas na estrutura aeroportuária e até uma greve de controladores de voo denunciaram um sistema de transporte aéreo que enfrentava problemas devido à falta de estrutura e planejamento.

    “São duas coisas que se cruzam. Primeiro, abordar a pessoa respeitosamente, provar uma certa seriedade”, explica Angelo, ao falar sobre a série dar vazão a esses assuntos com entrevistas com figuras como Marco Antonio Bologna, então presidente da TAM, Denise Abreu, então presidente da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), e Clara Ant, assessora especial do presidente Lula à época.

    “Vários desses exigiram longas e longas conversas e longas negociações. Mas também tem um outro lado da moeda, que é o acidente em si. Uma coisa muito importante é renovar o acidente para as novas gerações, para a gente não perdê-lo no imaginário e na lembrança pública. Talvez pessoas que fossem se retrair normalmente toparam falar com a gente por conta disso, por conta de uma missão pessoal, social e coletiva, de participar disso”, reflete.

    O que ‘Congonhas: Tragédia Anunciada’ traz de novidade?

    Segundo Angelo, um dos grandes desafios do projeto foi a pesquisa, já que houve intensa cobertura midiática na época do acidente. “Foi um acidente que todo mundo cobriu. O que você quiser pensar, tem. O que, por um lado, é maravilhoso. Por outro, é uma grande roubada, você tem que ver os materiais de todos os canais”, confessa.

    Para organizar o discurso, a série se equilibra sobre alguns eixos principais, como a dor das famílias, as investigações das causas do acidente e a própria situação do aeroporto, engolido pela cidade.

    “Desses eixos, até diria que existem mais. Também o próprio acidente em si, não só a investigação do acidente. A dor dos familiares, mas também a busca por justiça. O lado dos pilotos, como é o lado humano e também técnico dos pilotos.”

    Por isso, Defanti acredita que a grande contribuição da série é abrir debates sobre como o acidente influencia nos conhecimentos e procedimentos de segurança atuais da aviação, e também iniciar uma conversa sobre os eventos desencadeados pela existência de um aeroporto como Congonhas no meio da cidade.

    “Algumas coisas não puderam entrar na série, como a fuligem que tem nos arredores de Congonhas. Uma fuligem mesmo, uma poeira muito mais densa. Crianças com problemas cognitivos, porque é aquele barulho a cada 90 segundos. Inconscientemente, tem reverberações também de pessoas com problemas cardíacos. E isso a gente não pôde botar para dentro, mas justamente me parece que incorpora a possibilidade de melhor debate, melhores perguntas ao redor do aeroporto de Congonhas. A gente está usando o acidente como uma plataforma para conversar melhor. Tanto é que a gente não se aprofunda tanto nos temas específicos de Congonhas, para as pessoas, a partir da série, saírem dali e talvez tomarem atenção ao redor disso.”

    Críticas ao governo federal e Lula são ‘ovo da serpente’

    Outro ponto que o documentário salienta foram as críticas à resposta dada pelos órgãos governamentais e, sobretudo, pelo presidente Lula, que demorou três dias para fazer um pronunciamento oficial pelo acidente. Ant opina que houve uma tentativa de responsabilizar a presidência, uma narrativa que mudou aos poucos após a Infraero divulgar um vídeo mostrando que o Airbus pousou em uma velocidade incomum, muito mais rápido do que a aeronave que pousou minutos antes.

    “Hoje, a gente olhando em perspectiva, tantos anos depois, tinha algum ovo da serpente rolando ali que tentou usar o acidente de Congonhas e que também me parece que não conseguiu. Foi uma tentativa mal fadada ali naquela época”, sugere o realizador. “Algo que surgiria depois, mas que eu acho que era um descalabro tão grande utilizar a dor daquelas famílias e a proporção desse acontecimento nefasto, nacional, que isso foi um pouco morrendo.”

    Por isso, ele crê que contar essa história hoje é lembrar que o passado, por mais triste que seja, ensina.

    “Cada avião que decola e que pousa hoje no Brasil em segurança é também decorrência de aprendizados. Um acidente, por mais lamentável que ele seja, também precisa ser aprendido, precisa ensinar coisas. E o acidente de Congonhas ensinou. Se isso acontece novamente no Brasil, tomara que não, que a gente fique um pouco mais vacinado com essas coisas.”

    Últimas