
A ferrugem da engrenagem
Nas duas últimas semanas, ficaram expostas as vulnerabilidades de um sistema econômico globalizado que privilegia o mercado de ações. O frenético movimento das bolsas de valores diante do “tarifaço” imposto a diversos países pelos Estados Unidos da América (EUA) desencadeou o efeito “montanha russa” pela subida e queda de ações comercializadas pelas bolsas de valores espalhadas pelo mundo.
Esse frenesi teve início no dia 02/04, quando o atual presidente estadunidense assinou o decreto impondo tarifas recíprocas aos países com os quais estabelece uma relação comercial. O impacto dessas tarifas gerou uma onda de especulação, tendo em vista as possíveis retaliações que poderiam ser implementadas por nações afetadas. Já se fala de uma “Guerra Comercial”. A polarização já está definida: os Estados Unidos estabeleceram sobre a China uma tarifa de 145%. E a China, em uma reação imediata, fixou uma tarifa de 125%, sobre os produtos importados dos EUA.
Todos sabem que, nessa guerra, não haverá um vencedor. Mas as vítimas, não há como contabilizá-las, pois estão espalhadas por todos os continentes. Basta dizer que, diante dos cortes no financiamento de programas assistenciais instituídos pelos Estados Unidos, estima-se que uma média de 500 mil crianças podem contrair o vírus HIV, na região da África subsaariana, até 2030.
E, entre fogo cruzado, a União Europeia (UE) tenta sobreviver. De um lado, a guerra entre a Rússia e a Ucrânia; do outro, o conflito entre Estados Unidos e China.
Sei que algumas pessoas acreditam que a Terra é plana, outras acham que a história se repete, mas uma verdade é irrefutável: o tempo não tem marcha ré. Não adianta gritar “meia volta, volver”, que ele não obedece. O Criador já nos deu memória e lembranças para suportar a irreversibilidade do passar das horas. Há uma prepotência em querer que o futuro venha repetir o passado. Charles Chaplin já criticara, em “Tempos Modernos”, na década de 30, a exploração da mão de obra nas linhas de montagem para atender as demandas do mercado.
Hoje, as grandes indústrias estão robotizadas. Os braços mecânicos executam o trabalho repetitivo em linhas de montagem. Com isso, já não empregam tanto como outrora. E aqui vale lembrar o bordão do Lilico, personagem humorístico, vivido por Olívio Henrique da Silva Fortes: “Tempo bom, não volta mais. Saudade… de outros tempos iguais!” Os tempos são outros, não há mais como estabelecer um sistema de produção como no período áureo do Fordismo…
É fácil entender as atitudes políticas do senhor presidente estadunidense. Há um explícito desejo de cumprir promessas de campanha com medidas protecionistas. A deportação de imigrantes foi uma tentativa de ampliar o mercado de trabalho para a população nativa desempregada. Agora, com a imposição de tarifas altas para os produtos importados, pretende retomar o crescimento industrial. E com a receita adquirida por meio do “tarifaço” cobrir o déficit público do país.
O cômico dessa tarifação ficou por conta dos 10% atribuídos às ilhas de Heard e McDonald, nas quais não há civilização humana, ou seja, não produzem nada, não comercializam nada. Se os pinguins, que lá habitam, quiserem comercializar algum produto, já têm uma taxação imposta.
E para exemplificar essa questão da comercialização globalizada, vale mencionar que, antes da imposição das tarifas, tem-se o fato de que a Apple fretou cinco aviões de carga para transportar iPHones fabricados na Índia para os Estados Unidos.
Pergunta-se: por que tais aparelhos são produzidos na Índia e não nos Estados Unidos? A resposta está ligada ao valor da mão de obra.
Eis o paradoxo: empresas que apoiam a política do presidente estadunidense usam a mão de obra de outros países. E, indubitavelmente, serão afetadas pela tarifação. As ações das chamadas big techs (Google, Apple, Meta, Amazon, Microsoft) estão entre as que mais oscilaram no mercado. Esse foi um dos fatores que contribuiu para o recuo do presidente que anunciou, em 09/04, uma pausa por 90 dias aos países que não retaliaram, mantendo assim uma taxa mínima de 10%. Mas a China ficou fora desse pacote.
Nessa engrenagem capitalista, é possível ver o bom senso enferrujado. A sensatez desprezada. O termo “multilateralismo” ganhou espaço nos discursos de política econômica, pois, no comércio entre nações, há regras que precisam ser obedecidas. O “unilateralismo” é uma manifestação grotesca do egoísmo.
A inteligência humana assimila bem a cordialidade inerente às relações pacíficas, nas quais prevalece o respeito mútuo, que não precisa ser tarifado.