
O poder e a eterna vigilância
“O preço da liberdade é a eterna vigilância” é uma famosa frase de Thomas Jefferson, dentre outras, como aquela que pronunciou no discurso de posse como presidente dos EUA, em 1801: “O poder militar deve estar sob firme controle do poder civil”. Parafraseando Jefferson, podemos afirmar que o preço da democracia é também o da eterna vigilância. Em termos mais diretos, isso significa que poder bom é aquele que se exerce sob rédeas curtas.
Nessa mesma linha, vale relembrar a frase completa de Lord Acton, historiador católico inglês e liberal, que é sempre citada pela metade. Vamos a ela: “O poder corrompe e o poder absoluto corrompe absolutamente, de modo que os grandes homens são quase sempre homens maus.” Este complemento é fundamental para entendermos as entranhas do poder. A primeira ressalva é que ele está se referindo especificamente aos políticos que exercem o poder executivo. Na Inglaterra, o Chefe de Estado não é eleito, como são os políticos.
A tradição parlamentarista faz uso do bom senso ao estabelecer, ao lado do poder executivo, o poder exercido pelo Chefe de Estado, que não se confunde com o do Primeiro-Ministro. Este é quem exerce efetivamente o poder executivo. Daí a tentação de ir além do que deveria, abrindo espaço para o lado negro do poder. O Chefe de Estado, que pode ser eleito ou um monarca, inclui entre seus poderes aquele de arguir os atos do Primeiro-Ministro. Na verdade, ele funciona como uma espécie de fiscal do Primeiro-Ministro. O simples fato deste ter que prestar contas semanais de seus atos funciona como a rédea curta já mencionada.
Quando comecei a estudar ciência política, me pareceu um certo exagero essa prestação de contas toda semana. Não muito depois, passei a ver essa tradição inglesa, mantida ainda hoje, e que foi nossa até 1889, como fundamental, bem na linha da eterna – e frequente! – vigilância do poder. A capacidade que o poder tem de fugir de sua rota adequada é surpreendente.
Mas o leitor, ou a leitora, poderia levantar, legitimamente, a questão de quem exerce o poder de Chefe de Estado estar, do mesmo modo, submetido(a) ao veredito de Lord Acton, de também ser maléfico. Há, entretanto, uma diferença entre a natureza do poder executivo e a do poder de fiscalizar do Chefe de Estado. Este estaria sempre preocupado em detectar os desvios de rota do Primeiro-Ministro, função qualitativamente distinta daquela de quem exerce diretamente a administração do País. Na verdade, estão, em certa medida, em campos opostos, neste particular.
Um bom exemplo desse poder de fiscalizar do Chefe de Estado ficou claríssimo numa cena do seriado Crown. Churchill, então primeiro-ministro, mandou avisar à rainha Elizabeth II que estava resfriado. Não teria condições de comparecer à rotina semanal de prestação de contas. Na verdade, ele estava com pneumonia. Ao se eximir, novamente, na semana seguinte, de seu dever semanal, a rainha, por acaso, soube, através de um secretário particular de Churchill, que ele estava de fato com pneumonia.
Churchill acabou sendo convocado pela rainha a estar com ela na semana seguinte. E levou uma dura reprimenda. Elizabeth II lhe disse que não era responsabilidade dela governar, mas que fazia parte de suas atribuições assegurar ao País que os responsáveis pelo poder executivo tivessem plena condição mental e física de governar. Churchill, sempre inteligente, lhe pediu desculpas. Disse ainda que havia prometido ao pai dela, fazer todo o possível para que ela se tornasse uma grande rainha. E completou: “Estou vendo que V. M. está pronta para ser uma grande monarca”.
No Brasil, por muito tempo, não mais agora, era comum ler na grande mídia escrita, ou ouvir na televisão, frases do tipo “É uma rainha da Inglaterra”, como se isso fosse sinônimo de um poder puramente simbólico. Na verdade, nunca foi assim. A Chefia de Estado constitucional e hereditária tem a vantagem de não depender de políticos ou de partidos para manter sua posição de fiscal junto ao Primeiro-Ministro, precisamente por este último não poder removê-lo de sua função de fiscal como monarca.
E aqui cabe relembrar a figura de Dom Pedro I, que nos outorgou a carta de1824, normalmente criticada pelo instituto do poder moderador, que conferia poderes amplos ao imperador. O que nunca se menciona na trajetória histórica do poder moderador é que jamais foi usado para oprimir o povo. Muito pelo contrário. Foi usado, sim, para reprimir os abusos do andar de cima, ou seja, dos políticos e de sua capacidade de dar prioridade aos seus interesses de grupo ao invés de preservar o bem comum.
A escabrosa situação política vivida hoje pelo Brasil em que políticos e partidos, com raríssimas exceções, se valem de dinheiro público para fins particulares nos permite entender a falta de não termos um poder moderador atuante. Claro que este poder moderador teria que ser atualizado, mas jamais dispensado. Ele está presente hoje num grande número de países que adotam o parlamentarismo, tendo o Chefe de Estado como fiscal de última instância. No nosso caso, de nos livrar dos desmandos a que estamos submetidos como povo.
Podemos citar exemplos que vão desde o desrespeito à constituição e ao uso do próprio dinheiro público. E isso sem mencionar o descaso no combate à desigualdade. A própria ministra Carmen Lúcia admitiu publicamente que a constituição estava sendo desrespeitada por ela e pelo ministro Alexandre de Moraes. Os deputados federais continuaram a deixar brechas na legislação para uso de verbas sem plena fiscalização ao não identificar o deputado que propôs a emenda de seu interesse.
Por fim cabe ressaltar o desprezo da república pela população ao se achar revestida de supostos poderes que lhe dariam autoridade para usar o dinheiro público sem prestar contas a quem paga a conta via impostos. Mais grave ainda: políticos e partidos sem compromisso com a nossa persistente desigualdade social. Sem enfrentá-la para valer, o Brasil jamais será o País que tanto almejamos.
**Sobre o autor: Gastão Reis é economista e escritor.
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