• O caçador de silêncio

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  • 02/fev 08:00
    Por Ataualpa A. P. Filho

    “Eu sou um autista controlado…”

    Na condição de aprendiz compulsivo, não perco a oportunidade de assimilar as lições provenientes das crianças, pois nelas, encontramos a sinceridade, a espontaneidade.

    Tenho ido, com frequência, à casa de um amigo, pois estamos realizando um trabalho de pesquisa interessante. Em breve, falarei dele. Mas, no domingo passado (26/01), saí de lá com uma reflexão que merece ser compartilhada, pois se trata de um problema que atualmente mobiliza a atenção de vários educadores.

    Quando chego à casa dele, logo sou recepcionado pela belíssima cadelinha que faz uma festa. Preciso cumprimentá-la primeiro. Quando o portão se abre, ela fica entre mim e a Marta. É uma graça!

    Dessa vez, não esperei ser recebido pelo dono da casa. Fiz como se estivesse na roça, gritei “oh de casa” e fui entrando, pois estava atrasado. Na sala de visita, a televisão estava ligada e, deitado no sofá, estava uma criança, já com os pés na adolescência. Cumprimentei-o. E da cozinha, ouvi um “entra, estamos aqui, já nos finalmentes…”

    Entramos e entregamos as lembrancinhas do natal, porque em dezembro, não tivemos um encontro para falar do nosso trabalho. A Marta ficou na cozinha. Voltei para a sala:

    – O que você está assistindo?

    – Desenho do Mário.

    – Você gosta do Mário?

    – Sim.

    Com o controle na mão, ele passou a procurar algo que não consegui identificar. Mas, para falar a verdade, eu não entendo nada de Mário. Só o identifico pelo estereótipo:  macacão, boné, bigode.

    Sentei na cadeira do avô dele. E, na mesinha ao lado, estava um livro do Mia Couto que ainda não havia lido, “O Mapeador de Ausências”. Peguei-o. Não tentei competir com o “Super Mario”. O silêncio venceu. Ficamos assim por uns 10 minutos.

    Abri o livro. No primeiro capítulo, “Os que falam com as sombras”, encontrei, logo no início, a fala de uma personagem: “Todos temos duas sombras. Apenas uma é visível. Há, porém, aqueles que conversam com a sua segunda sombra. Esses são os poetas. O senhor é um deles, um dos que falam com as sombras”.

    Cada um hipnotiza-se com o que lhe convém. Super Mario e Mia Couto estavam assim frente a frente em uma sala de visita. Avancei na leitura do referido capítulo:

    “Sou professor de literatura, o meu universo é pequeno, mas infinito. A poesia não é um gênero literário, é um idioma anterior a todas as palavras. Foi isso que repeti em cada um dos debates.”

    Apesar de gostar da narrativa do Mia Couto, apesar de me identificar com as falas das personagens do livro que não conhecia, queria encontrar algo que me possibilitasse interagir com o neto do meu amigo. Mas, ao mesmo tempo, eu me continha, porque sei que ele sempre procura o silêncio, pois, para ele, é fundamental. Ora eu olhava para a tela da tv, ora lia uma página do livro. Um clique na cozinha, muito bem conhecido, quebrou o silêncio:

    – Vamos ali para o escritório! – O avô apareceu com dois copos e uma latinha na mão. Ele ligou o computador e começamos a falar sobre o que eu havia encontrado na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. Nosso diálogo não durou muito, logo a esposa dele fez o convite para o almoço.

    Saímos do escritório e fomos para a cozinha. Nesse tempo, chegaram outros netos e os bisnetos. Na sala, eram seis crianças. Uma galerinha do barulho. Para eles, almoçar é apenas um detalhe, algo secundário. Quando almoçávamos, a criança, que estava assistindo ao filme do Mário, chegou à porta da cozinha e dirigiu-se ao avô:

    – Vô, posso ir para o escritório?

    – Pode.

    – Posso ligar o computador?

    – Pode.

    A avó, que também é uma educadora, com larga experiência na educação infantil, falou:

    “Outro dia, ele me surpreendeu. Diante de tanto barulho, televisão ligada, as outras crianças correndo, gritando, ele falou uma coisa que eu não esperava: ‘esse pessoal parece um bando de autistas descontrolados.’

    Perguntei a ele: ‘e você é autista?’ Ele me respondeu: ‘sou. Mas, eu sou um autista controlado.’

    Parece que ele divide as pessoas em dois grupos: os controlados e os descontrolados.”

    Na penúltima vez que estive na casa desse amigo, ouvi do tio da criança, que, a trabalho, teve de ficar fora por uns três meses, um fato que também me fez pensar:

    Um dia, após o retorno da viagem, ele estava sentado no quarto. O sobrinho chegou, colocou a mão no ombro dele e disse: “senti a sua falta.”

    Pronunciou a frase e saiu. Não esperou a resposta do tio, que ficou desmontado com a espontânea manifestação de carinho de uma criança que é considerada autista. Ainda temos muito que aprender com elas! O mundo anda muito descontrolado.

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