• A figura do indígena no cinema: de objeto a sujeito das telas

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  • 06/10/2019 08:00

    Bang Bang! O disparo do pistoleiro na deserta cidade do Velho Oeste é o que dá tom ao faroeste. Destemido, já nos primeiros minutos da trama é escolhido como o herói enquanto os índios são reforçados como vilões. Um século depois, a não ser por novos mecanismos, a dinâmica das câmeras é a mesma, mas de que lado figuram os povos indígenas?

    Ferramenta de expressão do contexto social de dado período, a linguagem artística tanto acompanha quanto guia a mudança vivida pela sociedade. Seja na música, na literatura ou no cinema, é através da arte que se promove a circulação de ideologias e a construção de identidades; e a temática indígena não foge à regra.

    Doutor em Memória Social pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, o pesquisador em Memória, Cultura e Patrimônio do Brasil, Pedro Libanio Ribeiro de Carvalho, descreve a sociedade de massa como reflexo das visões de mundo projetadas por ela nas telas e também fora delas.

    “Hoje temos uma ideia bem mais ampla do que é a diversidade. Entendo que as mudanças na sociedade sofrem explosões de avanço no sentido da compreensão do outro e da diferença, assim como deslizamentos de barranco de retrocessos, de volta a noções de incapacidade do outro de autogestão, de tutela sobre ele e até mesmo de superioridade”. 

    Estudioso do uso artístico da figura indígena, o acadêmico explica que a primeira vez em que o ancestral comum do povo brasileiro foi incorporado a um movimento artístico aconteceu durante o Segundo Reinado, no Indianismo Romântico. De acordo com ele, a adesão ao discurso foi tamanha que jornais, políticos e nobres adotaram nomes indígenas.

    “Aquele era um discurso oficial bancado pelo imperador. Composto pela elite intelectual da corte, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro pretendia criar uma história de vultos e grandes heróis nacionais. Até hoje na cidade do Rio pode-se ver os índios em estátuas fazendo ornamento para alguma figura histórica. Isso é bem visto na Praça Tiradentes”. 

    Foto: Reprodução/Internet

    Fosse na literatura ou na pintura característica do final do século XIX, a figura do índio continuava a ser retratada de maneira dramática e heróica. Bom, isso até a chegada das câmeras fotográficas que, ainda que tenham mudado o panorama, deram lugar ao exotismo e mantiveram a figura do índio como aquele que é primitivo e genérico.

    “A técnica mudou, passou da pintura para a fotografia, mas a figura continua. Entre o final do século XIX e o início do XX, o Brasil passa por modificações que transformariam profundamente a sociedade: a proclamação da República, o crescimento das cidades e a modernização tecnológica; modificações que também aparecem nas artes”.

    Dos clássicos do faroeste norte-americano como ‘No coração das Trevas’ e ‘Dança com Lobos’, a filmes, fotos e matérias brasileiras, o doutor em Memória Social se propõe a entender o impacto tido pelas produções artísticas na forma como os próprios indígenas se vêem. Ele também pesquisa a resistência existente dentro das comunidades na atualidade.

    “Entendo que o tema da própria cultura para estes jovens seja um grande mote de responsabilidade para com eles mesmos, seu passado e seu futuro. Dessa forma eles conseguem se desvencilhar de diversos estereótipos que foram colocados ao longo do tempo e ganhar um espaço próprio dentro do mundo”.

    Tendo dominado e se apropriado das mídias como qualquer outro jovem, os indígenas brasileiros fazem hoje das ferramentas tecnológicas a que têm acesso, mecanismos de valorização de sua própria própria perspectiva e forma singular de ver o mundo. No cinema, pode-se dizer que o principal ponto de partida foi o projeto ‘Vídeo nas Aldeias’, de 1986.

    Soprar o fogo ou jogar fora as cinzas?

    Foi com esse questionamento, proposto pelo político Jean Jaurès, que, durante conversa por telefone, o Prof. Dr. em História José Ribamar Bessa Freire se referiu à preservação da tradição. Consultor do Ministério da Educação em questões que dizem respeito à educação indígena, falou sobre o olhar do poder público frente ao passado: reduzido a pó.

    Visto como ultrapassado, ele diz que “o governo joga fora as cinzas do fogo quando, na verdade, você tem que assoprá-lo para que ele possa viver”. E foi justamente com essa mentalidade de manter as chamas ardendo que, em 1986, o documentarista Vincent Carelli, junto da esposa e antropóloga Virgínia Valadão, funda o ‘Vídeo nas Aldeias’.

    Precursor na produção audiovisual indígena, o projeto faz da câmera ferramenta de luta política e revitalização cultural; propõe a formação de cineastas indígenas; promove a troca de imagens entre as aldeias e revela visões múltiplas de mundo: bem diferente do cenário de invisibilidade em que vivia-se até então.

    O acervo de cerca de oito mil horas de imagens produzidas junto a mais de quarenta povos no Brasil está disponibilizado no site do projeto, que se propôs a retratar a realidade indígena contemporânea.)

    Pesquisador no campo da História, com ênfase em literatura oral, memória, patrimônio, fontes históricas, história indígena, línguas indígenas e Amazônia, ‘Bessa’, como é mais conhecido no meio acadêmico, aponta a iniciativa como fundamental na extinção da colonialidade: mentalidade colonial que resiste, ainda que o colonialismo tenha acabado.

    “Na medida em que a escola, a mídia e o cinema representam os índios como atrasados, eu, como brasileiro, não vou querer ser descendente de um povo selvagem. Mas se a beleza que sai deles passa a ser abordada, eu vou ter orgulho em dizer que sou descendente de índios. É descobrir que existem outras formas de olhar o mundo”.

    Garantia de direitos e ferramenta de denúncia, o audiovisual dá ao índio a oportunidade de apropriar-se de uma arma que, até então, era usada contra ele. No ano de 2000, por exemplo, quando a TV brasileira completou 50 anos, passantes da estação de metrô da Praça da Liberdade, em São Paulo, foram questionados sobre a presença do índio na TV.

    Com o título de ‘Índio na TV’, a produção, dirigida por índios, expõe a visão preconceituosa tida pelo não-indígena do que é ser índio com base em novelas da época, como ‘Uga Uga’. As perspectivas integram o que ‘Bessa’, que é coordenador do programa de Estudos dos Povos Indígenas da UERJ, define como ‘Cinco ideias equivocadas sobre os índios’.

    “O primeiro equívoco é a ideia do índio genérico; o segundo é considerar essas culturas como atrasadas; o terceiro é congelá-las no tempo; o quarto é considerá-las como sendo do passado quando elas são vivas e presentes hoje; e o quinto é achar que eles não fazem parte das matrizes culturais brasileiras”.

    Longe de ser obstáculo para a modernidade e o progresso, como reforça o pesquisador e Doutor em História pela École Des Hautes Études en Sciences Sociales, na França, a herança cultural indígena enriquece a identidade brasileira. Ele aproveita para citar a revitalização das línguas indígenas: recentemente em debate no Museu Índia Vanuire, SP.

    “O português falado no Brasil tem 222.000 verbetes e mais de 45.000 línguas indígenas, só que desconhecem isso. A questão da língua é fundamental para a identidade. A televisão é monolíngue, o cinema é monolíngue, com raríssimas exceções. Só nos filmes produzidos pelos indígenas é que eles falam em línguas indígenas”.

    Takumã Kuikuro: por trás e frente às câmeras

    Takumã Kuikuro em ação. (Foto: Reprodução/Facebook/Produções Filmes Takumã)

    O primeiro contato com as câmeras não lhe sai da cabeça. Pequeno, à época, o hoje cineasta Takumã Kuikuro, de 36 anos, do Alto Xingu, descreve o sentimento de desconfiança tido pelos moradores da aldeia. Quem levou o equipamento até eles foi uma japonesa, e a impressão que se tinha era a de que havia “alguém lá dentro falando”.

    “Ela trouxe uma câmera pequena, foi filmando as pessoas falando e lembro muito bem disso, dela mostrando para o pessoal da comunidade daqui. E a câmera foi falando sozinha, então as pessoas ficaram olhando e achando que tinha uma boneca que ficava lá dentro falando”.

    Aos poucos se acostumando com a presença das câmeras na aldeia, Takumã foi assistente na produção de registros televisivos do tradicional ritual do Alto Xingu de homenagem a mortos ilustres, o Kuarup; até que, em 2002, graças ao ‘Vídeo nas Aldeias’, passou a dirigir os próprios filmes de forma a valorizar e fazer significar a própria identidade.

    “É uma ferramenta muito forte que chegou na nossa mão para a gente, através disso, mostrar tudo que temos, nosso trabalho, nossa luta. É como se fosse uma arma para fortalecer nossa cultura, nossas crenças através do audiovisual. Hoje já temos cineastas indígenas em qualquer lugar do Brasil”.

    Formado pela Escola de Cinema Darcy Ribeiro, o documentarista, que pode ser acompanhado no YouTube, atua como diretor na Produções Filmes Takumã: é roteirista, editor, promove oficinas para adultos e atua como multiplicador para quem, assim como ele, pretende ir de objeto a sujeito no cinema indígena. 

    “Agora mesmo estamos organizando a segunda mostra de cinema de índios do Xingu. Vai ser em novembro numa cidade aqui próxima. A gente vai formando mais cineastas indígenas. Temos que fazer algo diferente, dentro da realidade do povo. Estou sempre procurando projetos para a gente continuar nosso trabalho na aldeia”.

    Insaciável, o envolvimento de Takumã com o cinema já lhe rendeu a produção de obras como ‘Cheiro de Pequi’, ‘O dia em que a Lua menstruou’, ‘Pele de Branco’, ‘Os Kuikuro se apresentam’, ‘Academia Kuikuro’, ‘Karioka’, ‘Londres como uma aldeia’, ‘Mudanças climáticas no Xingu’, ‘A língua do peixe’, ‘Os encantos do Rio’, ‘Ito’ e ‘Xandoca’.

    Isso sem mencionar ‘Hiper-Mulheres’, em que atuou como roteirista, bem como contribuiu com a fotografia e o som do documentário. A produção é vencedora de prêmios do Festival de Gramado, Festcine Goiânia, Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, Festival de Curitiba, Hollywood Brazilian Film Festival e Latin American Film Festival.

    Disponível em plataformas como o YouTube, o Google Play Filmes e a Netflix, a obra traz a expressão musical como elemento central para os Kuikuro através do Jamurikumalu: o maior ritual feminino do Alto Xingu. Aclamado pela crítica, pode-se dizer que o filme é resultado da visão de Takumã e da nova geração de cineastas indígenas: a de que cada língua conta uma história.

    Produções em andamento no Território Indígena do Xingu. (Foto: Reprodução/Facebook/Produções Filmes Takumã)

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