Quem tem medo do povo?
A pergunta do título, além de ser importante, é muito reveladora de como opera, nos diferentes países, a relação entre governantes e governados. Não há necessidade de destroncamento de cérebro para perceber que quanto melhor for a qualidade do diálogo tanto mais afinadas estarão as partes interessadas. Evitemos a armadilha mental de pensar que seria necessariamente melhor numa república, pois existem sólidas razões históricas em defesa de certas tradições monárquicas luso-brasileiras quanto a ouvir e dialogar com o povo.
Podemos recorrer à própria história lusitana dos tempos de Dom João VI. Havia, em Portugal, a tradição de alguém saltar à frente do rei em sua caminhada pelas ruas e gritar: “Justiça!”. O pedido era levado em conta, e a resposta era dada em tempo hábil para que a justiça fosse feita.
Mas não era só isso. Quando aqui chegou, D. João VI manteve a cerimônia do Beija-Mão, que não era apenas a reafirmação da lealdade dos súditos ao monarca. Era também um momento de solicitar alguma coisa ao rei, frequentemente atendida. As pessoas sabiam que D. João VI trouxera para o Brasil uma grande fortuna (cerca de metade do meio circulante de Portugal). Como seu pai, D. Pedro I, às 9 horas da manhã de cada sexta-feira, recebia qualquer pessoa, escravos inclusive, que quisesse falar com ele sem marcar audiência prévia. Bastava aguardar na fila a sua vez.
Essa mesma tradição semanal se manteve aos sábados, das 17 às 19 horas, na Quinta da Boa Vista, por D. Pedro II. Certa feita, uma escrava que havia conhecido em Salvador, na Bahia, estava querendo falar com ele. Pedro II a reconheceu da janela do palácio, chamando-a pelo nome. Ordenou ao porteiro que a fizesse entrar, e a recebeu carinhosamente. Bem diferente, quase um século depois, do caso do negro Jesse Owens, ganhador de quatro medalhas de ouro nas Olimpíadas de Berlim, em 1936, que teve que entrar pela porta dos fundos da Casa Branca num jantar em sua homenagem(!?).
A Princesa Isabel, sempre tratada pelo povo de forma respeitosa, não se perdia em pompas e circunstâncias. Era bastante afável no trato, e sempre preocupada com a abolição em suas três regências. A Lei do Ventre Livre, de 1871, assinada por ela, criou também um fundo de alforrias cujos efeitos foram significativos. Conseguiu reduzir à metade o número de escravos de 1.510.806, pelo Censo de 1872, para cerca de 720.000 na última matrícula geral do Império, em 1887. Na mesma linha de seus bisavô, avô e pai, D. Isabel era sempre ouvinte e interlocutora atenta das pessoas do povo.
Essa interação entre governantes e governados foi comum ao longo de todo o Império. Mas não foi isso que aconteceu já nos primórdios da república. A Família Imperial foi embarcada pelos golpistas militares, às três horas da madrugada, com receio da reação popular ao tomar conhecimento do golpe de Estado que pôs fim ao regime monárquico. O medo do povo teve sua certidão de nascimento emitida na data em que a dita república foi proclamada.
Tempos autoritários logo se fizeram sentir na chamada ditadura da espada por quase quatro anos acompanhada da censura à imprensa, inexistente por cerca de dois terços do século XIX sob a monarquia. Os cadentes da Escola Militar do Realengo, que se autodenominavam “os científicos”, por influência do positivismo de Auguste Comte, se acharam no direito de dar ordem unida à sociedade civil no período, exatamente aquela que lhes pagava os soldos.
O historiador José Murilo de Carvalho, em sua obra “Forças Armadas e Política no Brasil”, na reedição de 2019, em sua Parte I, tem um único capítulo intitulado “Uma república tutelada”, que dá bem a medida do que foi a história republicana brasileira de 1889 até 1985, praticamente um século. Ou seja, um regime em que o Exército se arrogou o papel de um Poder Moderador espúrio. Simplesmente não tinha legitimidade. E a institucionalidade era capenga.
Daron Acemoglu & James A. Robinson em seu best-seller “Por que as Nações Fracassam”, nos falam em instituições extrativas e inclusivas tanto no plano político quanto no econômico. Para eles, as inclusivas são aquelas que distribuem o poder político de modo amplo e pluralístico e que são capazes criar certo grau de centralização política de tal forma a estabelecer a lei e a ordem, e asseguram direitos de propriedade, e ainda uma economia de mercado inclusiva. As extrativas vão na linha oposta, e só beneficiam pequena parte da população, que busca enriquecer às custas da pobreza da maioria.
Em termos mais diretos, podemos afirmar então que as inclusivas são aquelas que conseguem enfrentar as oligarquias com sucesso. Um pequeno exercício de aplicação dessa conceituação ao Império e à república nos revelam o que foi cada uma dessas formas de governo no Brasil. Nabuco, em carta ao Alte. Jaceguay, em 1895, em defesa da monarquia, nos diz que ela era a maior aliada do Exército na luta contra as oligarquias. O poder moderador ia na mesma direção, jamais usado para oprimir o povo, e sim como instrumento para combater os desmandos do andar de cima, vale dizer, das oligarquias.
O sucesso da monarquia pode ser medido pelas leis abolicionistas (80% da população de origem africana já era livre quando foi assinada a Lei Áurea em 1888) e pela proposta de assentar os libertos em lotes próprios ao longo das ferrovias, que foi, logo de saída, engavetada pela república. O País caminhava na direção das instituições inclusivas na política e na economia.
Segundo o historiador Sergio Buarque de Hollanda, o Brasil em que os fazendeiros mandavam e desmandavam nasceu com a república. E foi assim que as oligarquias passaram a ter caminho livre para seguir em frente com sequelas presentes em nossas instituições excludentes ainda hoje. A grande e persistente desigualdade brasileira comprova o fato. Os últimos dados sobre os ganhos salariais da alta burocracia brasileira nos revelam que continuam crescendo. Tem o sabor de luta a favor da desigualdade.
Um regime dito republicano, que se habituou a mandar a conta para o povo sem consultá-lo antes, não tem interesse em criar instituições inclusivas. Preferiu na prática a minoria extrativa.
**Sobre o autor: Gastão Reis é empresário e economista